Eu, Salas Neto, na luta pela independência: UM COMBATENTE DE PALMO E MEIO- SALAS NETO



Vime envolvido muito cedo no ambiente da luta de libertação nacional, por uma razão muito simples: o meu padrasto, o Senhor Manuel João Afonso Neto, um preto escuro do Quissol (Malange) , era combatente do MPLA na clandestinidade em Luanda, tendo sido preso, julgado e condenado a cinco anos de prisão, em 1963, por um tribunal militar colonial, no quadro de um processo politico.

Entre os seus companheiros estavam figuras como Lopo do Nascimento, Herminio Escórcio, Roberto de Almeida, João Filipe Martins, Bernardo de Sousa, Cabelo Branco, Rui Gonçalves, Couto Cabral e o senhor Duducho.

Nessa altura, minha mãe tinha um pouco mais de 24 anos, mas carregava já 4 filhos( 2 trazidos de fora). Com poucos anos de Luanda, tinha apenas a força dos seus braços para trabalhar. Por aqui se pode imaginar quantas toneladas de roupa ela teve de lavar, quantos quilómetros quadrados de chão teve de limpar e quantos rios de lagrimas teve de amargurar para cuidar de si e das 4 crianças que tinha em mãos.



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Cumpridos os cinco anos de prisão na atual Cadeia Central de Luanda, o meu padrasto e seus companheiros seriam libertados em 1968, em dia e mês que já não me lembro. Mas lembro-me bem que ele chegou a casa com um grupo deles. Nesse mesmo dia recomeçaram logo a luta, tratando de ouvir a transmissão das 19 horas do« Angola Combatente».

Apesar dos meus 8 anitos apenas, eu seria recrutado para uma missão importante: vigiar a movimentação de eventuais bufos da PID/ DGS. Este foi o meu baptismo. Quando não estivesse de serviço, também me deleitava com aquele programa da rádio Brazzaville.

Eram bonitas as mensagens codificadas, quer para os combatentes na clandestinidade, como para os guerrilheiros nas frentes de combate.

Portanto, embora criança, já tinha consciência da luta e nela participava de algum modo, algo que influenciava a minha atitude em relação aos colonos. Desconfio que a partir dessa altura passei a desenvolver uma certa tendência para a confrontação.

_A 11 de Março de 1971 seria vitima duma cobarde e brutal agressão protagonizada por 2 rapazes brancos sobre uma criancinha negra indefesa, da qual resultou a perda do meu olho direito, sem que lhes acontecesse alguma punição.

Foi assim : Eu e dois miúdos mulatos meus vizinhos de rua e amigos ( um é o Toy do Kamano, antigo andebolista e hoje alto funcionário das Pescas, e o outro era o Betinho Mulato) vínhamos das matas da FTU, onde fôramos caçar pássaros ou assim. Eram 16 e tal , quando na zona do antigo matadouro, nos deparamos com dois jovens  brancos, armados com caçadeiras de pressão de ar( as chamadas armas de chumbo), a fazerem tiro ao alvo a periquitos engaiolados em casa de outro branco. Admirados, detivemo-nos a apreciar o insólito. Ameaçadoramente, os dois jovens brancos mandam-nos desaparecer dali. No quadro da minha confrontação com os colonos, resmungo qualquer coisa, sem aquilatar bem a correlação de forças. Também era apenas uma criança de 11 anos. O enfrentamento acabou por me sair caro: eles apontam as armas para mim e tocam a disparar contra o pretito. Fujo dali a todo vapor, mas cem metros depois , pensando já estar a salvo , paro e viro-me para saber qual a sorte dos meus companheiros. Foi o meu azar: sou atingido em cheio no olho direito. Vem a policia militar colonial, que me leva ao hospital Maria Pia. Nada acontece aos dois rapazes brancos. Anos depois o Carlos Lousada identifica-os como sendo os« Irmãos Metralhas», bando de jovens delinquentes brancos que punha a Terra Nova em alvoroço, com as suas mais diversas tropelias. Até hoje não consegui reencontrar-me com nenhum deles para uma conversinha. 

Nos anos 90, o David Mestre, não sei se a brincar, falava-me da possibilidade de se intentar uma ação judicial contra o Estado Português, para reparação de danos pessoais. Sabendo das voltas que tal empreitada poderia dar, com pouquíssimas possibilidades de vir a vingar, nunca levei muito a serio tal ideia.  Seria provavelmente perda de tempo. Outra Baixa de Kassanje.

_Tal como um verdadeiro Ngola , que não se rende atoa, apesar de ferido quase de morte, não desisti da luta. Ao contrário, o espirito de revolta passara a ser maior. «barracar» o colono branco de qualquer jeito seria a palavra de ordem. Dar cabo das suas frutas, como mangas, maçâs da índia e uvas, era uma das« acções de combate» mas frequentes.

Uma vez, eu e o miúdo Walter chegamos a escangalhar o Mercedes de um taxista branco,  ao tentarmos ingenuamente derruba-lo por via de um arame que atravessáramos na rua. Resultado: o nossos pais tiveram que arcar com o prejuízo da reparação e nós ganhamos apenas uma boa sova.

Contudo, era gratificante aplicar uns beliscos e dar uns cocos nos « Man’scabixi», que eram os filhos da família de colonos mais transmontana  e mais encardida entre as cerca de 15 que moravam na rua c-5, que era a minha zona de ação, embora morasse na c-6.

A confrontação era tão ostensiva, que os brancos da c-5, em meio a provocações, comentavam à minha passagem« lá vem o turra…lá vem o turra». Lembro-me de uma rapariga que tratava de me salpicar com água sempre que me visse a passar, quando ela borrifava a frente de sua casa. Eu repostava com uma xingadela. E ela parecia gostar. e eu também. Parecia uma relação de amor e ódio, que eu até já sabia a que horas passar para ser «carinhosamente» borrifado. Só que ela já tinha umas chuchonas, enquanto eu nem pintelhos tinha.

_Contudo, o meu maior «ato de bravura» ocorreria em 1972, salvo o erro. Escola da Micate, sala 3, turma da 3ª classe da professora Júlia, uma Cabrita que tinha um Alfa Romeu castanho e que morava no Bairro Salazar. Os alunos entram e perfilam-se para entoação do hino Português. Ao ver-me calado, até porque eu era o seu «capataz», ao fim da sessão ela pergunta por que razão eu não abrira a boca. Eu respondo que dali em diante nada mais tinha haver com o «Heróis do Mar» . «Porquê?», pergunta ela. « Porque eu não sou Português. Eu sou Angolano!», declaro solenemente.

A sala entra em alvoroço. Chama-se o Director, que aciona a Policia. Sou levado a 6ª Esquadra, onde não me livro de uns bons porretes. 

O Gilberto Major , o André Meireles e o António Daniel, o Antoninho do Petro de Luanda, que agora é pastor da Josefat, ainda devem estar aí vivos para testemunharem isso. 

_Quando se dá o «25 de Abril», estou a estudar o 1º ano do ciclo preparatório na «Emídio Navarro», escola por onde passou muita malta que hoje «mija» no País. Aqui a «barraca» passara a ser mais solta.

_Em meados ou finais de 1974 quando os três Movimentos vão colocando comités nos bairros suburbanos da cidade, entro na onda e crio uma base independente de Pioneiros do MPLA, mobilizando uma vintena de miúdos do bairro, que fazia todas as piruetas como as demais: parar o trânsito para o hastear e o arrear da bandeira, coletar dinheiro para as refeições e manter destacamentos em «prontidão combativa» com as nossas armas de pau e fardamento apanhado sabia-se lá onde.

Meses depois , o MPLA cria um destacamento especial de pioneiros , com base na Biblioteca Zinga Mbande, sob comando da «camarada Rosita», que me convida a ceder os meus pioneiros. Assim faço. Há uma eleição com três candidatos (eu, o Jota-Jota e o Rui Cirgado que eramos os mas crescidos) para escolha do seu braço direito. Ganho as eleições muito claramente. Porém, a camarada Rosita subverte a vontade do eleitorado, nomeando abusivamente o Jota-Jota como o seu adjunto. Zangado, abandono a OPA, no que seria a minha primeira ruptura com o Glorioso. Eu não admito abusos partidários.

Só voltaria em 1979, já na «Jota» do INE Garcia Neto. Fui«rectificado» e tudo. Naquele tempo, para se ser  do M era preciso merecê-lo. Agora, basta ir às maratonas….

_No dia 10 de Novembro, não estou nada bem da vida. Dias antes fugira de casa, em solidariedade com o meu irmão mais velho, que se pusera ao fresco semanas antes sem nada me dizer. Por mas que nos pintemos, viver com padrasto é sempre complicado, salvo raríssimas e boas exceções.

Mesmo mal, resolvi ir ao primeiro de Maio juntar-me à festa da Dipanda. Fui à boleia da carrinha do Grand’s Pinho. E quando as balas trace jantes se juntaram ás estrelas no céu, sorri. Estava cumprido o programa mínimo.


In «As Kassumunas do Bairro Indígena», Fukuma Editora, Luanda, Agosto de 2019.


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