Ecos do Vaticano: A DESGRAÇA DE UM PURPURADO ROMANO (I)- Raul Tati



Nos últimos dias, o Vaticano está no centro das atenções e não propriamente pelos melhores motivos.

Dois factos de extrema importância mediática estão a agitar a sociedade global, tendo em conta o impacto da igreja católica no mundo enquanto maior instituição religiosa e pelo ineditismo de ambos os factos. O escândalo que envolve o Cardeal Angelo Becciu, condenado recentemente por um tribunal civil da Santa Sé a cinco anos e seis meses de prisão e a prerrogativa pontifícia da “bênção dos casais homossexuais” são factos sem precedentes na História recente da Igreja Católica. 

Vou tecer algumas reflexões sobre os dois factos em separado. Nesta parte I reservo-me ao processo da condenação do Cardeal, deixando a questão dos homossexuais para a parte II.


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Relativamente à condenação do Cardeal Becciu, aquando da eleição do Papa Francisco, lembro-me de ter reagido na minha página do facebook, ao saudar o novo Pontífice, augurando que, em vez de um báculo (cajado dos bispos), o novo Papa devesse empunhar uma vassoura para fazer uma limpeza das raposas matreiras que se acoitavam na cúria romana.  Eu escrevia isso porque tinha ciência plena do lado sombrio da Igreja Católica, especialmente do mundo tenebroso da cúria romana onde nem sempre a santidade é uma marca garantida. Dentro dos muros do Vaticano multiplicam-se os escândalos de ordem moral e criminal. A morte “misteriosa” do Papa Luciano (João Paulo I), os escândalos da Banca Ambrosiana conectados com o truculento Arcebispo Marcinkus, a resignação intempestiva e surpreendente do Papa Ratzinger (Bento XVI), o incómodo dossiê da pedofilia dos clérigos, inter alia, são apenas alguns tópicos que fazem o cardápio daquilo que poderíamos chamar de rosto humano da hierarquia católica.


A Igreja sempre foi adversa aos escândalos públicos, por isso ao longo dos séculos ela criou habilidades na gestão intramuros dos seus pecados para evitar escândalos diante do mundo. Aliás, lá diz o texto sagrado: “Mas  qualquer que escandalizar um destes mais pequeninos que crêem em mim, melhor lhe fora  que se lhe pendurasse ao pescoço uma pedra de moinho, e se submergisse na profundeza do mar. Ai do mundo, por causa dos escândalos; porque é necessário que venham escândalos, mas ai daquele por quem o escândalo vem!” (Mt 18, 6-7). 

A hierarquia católica soube sempre ter um devido controlo dos escândalos para que não vazassem cá fora, não tanto por temor de Deus, mas, provavelmente, para não comprometer a imagem da Igreja e a sua áurea de santidade. Infelizmente, para a Igreja Católica, essa missão vai sendo cada vez mais difícil. Hoje, a hierarquia da Igreja está irremediavelmente exposta, não apenas diante dos “papparazzi”, que quase diariamente procuram chafurdar as entranhas da hierarquia católica no encalço de crónicas sensacionalistas, mas, sobretudo, dos vaticanistas cujo acesso aos corredores do Vaticano lhes permite o contacto com dossiês delicados da santa madre igreja.

Quem imaginaria, num passado recente, que um jornalista como o italiano Gianluigi Nuzzi pudesse ter acesso ao escritório do Santo Padre, ter em suas mãos centenas de documentos confidenciais “que revelam a precariedade da igreja entre conspirações e negócios obscuros”? Dessa investigação aturada, graças à colaboração de uma fonte secreta no Vaticano, Gianluigi escreveu o livro que traz revelações sobre negociatas obscuras com o poder italiano (Giulio Andreotti, Berluscone e outros), doações de fontes duvidosas que usaram a Igreja para operações de branqueamento de capitais, a verdade sobre os Legionários de Cristo, a pedofilia, e os excessos dos prelados de todo o mundo. O livro tem o título “Sua Santidade: as cartas secretas de Bento XVI. Como o Vaticano vendeu a alma”. Noutro livro, com o título “Vaticano S.A.”, Gianluigi traz outras revelações dos arquivos secretos  guardados na Suiça que reportam escândalos políticos e financeiros da maior instituição religiosa do mundo; descobre-se uma autêntica lavandaria de dinheiro pela máfia e por inescrupulosos aventureiros do mundo da política e dos negócios; um paraíso fiscal que não se submete a nenhuma legislação financeira internacional a não ser a do próprio Vaticano.

Eric Frattini, jornalista e Professor da Universidade Complutense de Madrid,  é outro vaticanista que entra no mundo proibido do Vaticano para desvendar um dos problemas mais obscuros da hierarquia católica: o sexo. A partir dos ficheiros secretos do Vaticano escreve a obra com o título provocante: “Os Papas e o Sexo”. O mesmo autor brindou-nos ainda com o livro “Os Corvos do Vaticano”, título inicial que depois veio à estampa como “Os Abutres do Vaticano”. Este é o livro que resulta da bombástica investigação do famoso “vatileaks” com o epicentro no Banco do Vaticano, também conhecido como IOR (Instituto per le Opere dei Religiosi). Uma vasta panóplia de escândalos envolvem altos dignitários eclesiásticos com traições, conspirações, espionagem e contraespionagem, lavagem de dinheiro (até de fábricas de preservativos!), envolvimento de figuras sinistras da máfia siciliana, afastamento compulsivo de prelados impolutos denunciantes, plano para assassinar o Papa, o desaparecimento de uma adolescente dentro dos muros do Vaticano, entretanto feita escrava sexual, guerras intestinas entre jornalistas e directores da imprensa do Vaticano, dentre outros.  Com este trabalho, o jornalista praticamente já previa a inevitabilidade da resignação papal. Para aqueles que nutrem alguma simpatia à literatura vaticanista sugiro mais estes títulos: “Os Banqueiros de Deus”, de Gerald Posner e “Curiosidades do Vaticano”, de Luis Miguel Rocha. 

Ao ser eleito Papa, o então Cardeal Bergoglio, tinha profundo conhecimento das maracutaias da cúria romana. O conclave dos Cardeais que o elegeu viu nele a figura eclesiástica que a Igreja Católica precisava para limpar  “a fumaça de satanás” – no dizer do Papa S. Paulo VI – que se tinha instalado na mais alta hierarquia da igreja. Desde então, o Papa Francisco abraçou uma guinada reformista dentro da cúria que temos vindo a acompanhar. A sua determinação em destruir o carreirismo clerical e certos hábitos aristocráticos muito arreigados na hierarquia católica valeu-lhe uma legião de inimigos confessos e inconfessos. O Papa Francisco assumiu com humildade, mas com determinação e rigor, essa “guerra fria” contra os abutres do Vaticano, expondo ao mundo uma nova versão das “chagas da igreja” do Padre António Rosmini (1797-1855). Este padre, também filósofo, escreveu o livro “Delle Cinque Plaghe Della Chiesa” (Sobre as Cinco Pragas da Igreja) que acabou por ser proibido e condenado para o “Index Librorum Prohibitorum” (Catálogo dos Livros Proibidos), embora reabilitado mais tarde pelo Papa S. Paulo VI e S. João Paulo II. As cinco chagas da Igreja, segundo Rosmini, eram as seguintes: 1) o distanciamento entre o clero e o povo (clericalismo e carreirismo); 2) a fraca formação cultural e espiritual do clero (sobretudo naquela época do feudalismo); 3) a desunião entre os bispos; 4) a intromissão da política na nomeação dos bispos; 5) as riquezas acumuladas pela igreja.

Com as suas reformas, hoje a Igreja decidiu não mais fazer o encobrimento dos abusos de pedofilia cometidos pelos sacerdotes. Antes pelo contrário, ela assume essa chaga não só com a reparação moral e indemnizações às vítimas, mas, sobretudo, pela responsabilização individual dos prevaricadores. O mesmo se passa com as figuras eclesiásticas que tenham traído a Igreja com improbidade e participação nos negócios do mundo. O Papa Francisco acabou com a impunidade que fazia da Igreja um ninho de cobras venenosas. Estas estão a ser expurgadas.

É neste contexto que leio a sentença contra o Cardeal Angelo Becciu. O destino levou-me a lidar com esta alta figura eclesiástica enquanto Núncio Apostólico em Angola. Tivemos várias diatribes na crise que assolou a Igreja em Cabinda com a polémica nomeação de D. Filomeno Viera Dias para a Cátedra de Cabinda. Sempre vi nele, afora os hábitos de Monsenhor, um espírito carreirista indisfarçável e apetências aristocráticas muito frequentes em clérigos italianos instalados no Vaticano. O seu protagonismo no “forcing” que empurrou D. Filomeno para Cabinda pareceu-me inusitado. Era imperioso colocar D. Filomeno em Cabinda, custasse o que custasse! Numa carta “confidencial” escrita ao então Bispo Emérito D. Paulino Madeca, o Núncio Angelo Becciu dizia numa dada altura: “Quando não se colabora na concretização de uma decisão solene do Santo Padre como a nomeação de um Bispo, tudo pode acontecer.” E numa outra passagem dizia: “Na unidade e na comunhão está a vida e o futuro da Igreja, na sua divisão só estará morte e destruição. Historia docet!” O tempo e os factos dizem-me, agora, que não o fez pela Santa Madre Igreja, nem por Deus, mas pela sua carreira. Depois de Angola, passou fugazmente em Cuba como Núncio de Sua Santidade Bento XVI, tendo sido projectado de forma fulgurante na mais alta hierarquia da Igreja enquanto “Sottosegretario di Stato”, uma espécie de terceiro homem do Vaticano, tendo sido alcandorado ao tão cobiçado posto de Cardeal da Santa Madre Igreja. Hoje não passa de um purpurado caído em desgraça porque construiu a carreira na perfídia e na falsidade. 

Este facto, finalmente, destapa a natureza da Igreja que é ao mesmo tempo santa e pecadora (sancta et semper reformanda). Ela é santa pela sua origem divina, mas é pecadora porque é constituída por homens frágeis. Diz S. Paulo: “Temos pois este tesouro em vasos de barro para demonstrar que este poder que a tudo excede provém de Deus e não de nós mesmos.” (2Cor 4, 7).


Correio Angolense 

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