Quando um País Não Consegue Enterrar os Seus Mortos- Sousa Jamba



Esta manhã, tive uma conversa comovente com o meu sobrinho Harry Assis — um jovem que outrora conheci como bebé em Lusaka e que hoje, surpreendentemente, fala com a lucidez de quem já compreende os labirintos do poder e da dor. Falámos sobre o que acontece quando a política se sobrepõe ao luto. Sobre a dignidade. E sobre o que revela uma nação quando se torna incapaz de enterrar um dos seus com a solenidade devida.


O que se passa hoje na Zâmbia é mais do que um impasse logístico. É um retrato de um Estado em disfunção, dividido entre lealdades partidárias, ressentimentos históricos e uma liderança que hesita quando mais se exige compostura. O corpo do ex-Presidente Edgar Lungu permanece retido na África do Sul, sem data definida para o seu regresso. Um país em luto ficou sem cerimónia. E o falecido, sem sepultura.


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A repatriação dos restos mortais de Edgar Lungu foi interrompida pela segunda vez, devido a um desacordo entre a sua família e o governo liderado pelo Presidente Hakainde Hichilema. O motivo? Um desentendimento sobre os termos do funeral de Estado: quem organiza, quem preside, quem fala e, sobretudo, quem é bem-vindo. A família acusa o governo de ter violado os acordos estabelecidos, ao anunciar unilateralmente o programa do funeral e impor decisões logísticas sem a sua consulta. Em particular, opõem-se à ideia de que o Presidente Hichilema, adversário político de longa data de Lungu, presida à cerimónia, alegando que o falecido expressou o desejo explícito de que Hichilema não se aproximasse do seu corpo.


Tasila Lungu, enquanto filha e membro direto da família do antigo presidente, tem estado envolvida de perto nas negociações com o governo. Embora não tenha feito uma declaração pública individual, está alinhada com a posição coletiva da família, expressa pelo porta-voz Makebi Zulu. A família manifestou publicamente a sua profunda insatisfação com a forma como o governo tem conduzido o processo, sentindo-se marginalizada e desrespeitada. Segundo afirmam, foram violados acordos prévios e ignorados os desejos finais de Edgar Lungu, que teria pedido que os seus restos fossem tratados apenas pela família e que o atual Presidente não tivesse qualquer envolvimento. Consideram que questões de consciência e honra não devem ser sacrificadas em nome da conveniência estatal. A presença de Tasila Lungu em reuniões-chave reforça a seriedade da posição familiar, que se sente frustrada e desautorizada perante uma máquina estatal que privilegia o protocolo político em detrimento da sensibilidade humana.


Este confronto não é meramente cerimonial. É uma extensão das rivalidades políticas que há muito dividem a Zâmbia. A família e apoiantes de Lungu, sobretudo dentro do partido da oposição, o Patriotic Front, acusam o governo de tentar capitalizar politicamente um momento de luto nacional. Do outro lado, o governo apela à unidade e ao respeito pelas instituições do Estado.


Mas há um elemento humano, quase universal, que não pode ser ignorado. Durante o luto, uma família não está no pleno das suas faculdades. A dor tolda o raciocínio e quem mostra compaixão torna-se guia. Neste caso, foram os antigos aliados políticos de Lungu que se aproximaram com gestos de empatia visível, enquanto o governo pareceu frio, 

excessivamente técnico e politicamente distante.


Este momento poderia, e deveria, ter sido uma oportunidade de reconciliação. Tal como sucedeu noutros contextos africanos, os funerais são ocasiões únicas em que inimigos políticos partilham bancos de igreja e antigas feridas começam a sarar. A família de Lungu tinha, nas mãos, a possibilidade de transformar a sua dor em gesto nacional de unidade. Perdeu-a.


Pior ainda, Tasila Lungu, deputada e jovem política, desperdiçou a hipótese de se afirmar como mediadora num momento crítico. Uma mulher jovem, assumindo a dianteira em nome da paz, teria ganho legitimidade, não só como herdeira política do pai, mas como figura capaz de renovar o discurso político zambiano. O país procura novas lideranças. Ela poderia tê-lo simbolizado. Mas optou pelo silêncio e pela hesitação.


Entretanto, o Patriotic Front permanece acéfalo. Desde a saída de Lungu, não houve convenção nem sucessor legítimo. A confusão à volta do funeral reflete a ausência de liderança clara no partido e, agora, no país.


Há, no entanto, algo de profundamente comovente na cultura política zambiana. A Zâmbia é um país africano muito especial. Os zambianos são únicos no sentido em que, apesar das dificuldades e divergências, conseguem, em momentos cruciais, convergir. O interesse da nação e o ideal de dignidade continuam a ter peso real, algo que, infelizmente, escasseia em muitas outras partes do continente. Esta sensibilidade coletiva foi, em grande medida, herdada de Kenneth Kaunda, o primeiro presidente, um cristão profundamente praticante. A humildade, a moderação e a capacidade de escutar fazem parte do subconsciente político zambiano. Apesar das tensões ocasionais e dos impulsos extremistas, há uma propensão estrutural para o bom senso e para o equilíbrio. É isso que me dá esperança. E foi precisamente esse o tom, a confiança discreta mas convicta, que me tocou na voz do meu sobrinho Harry Assis.


Se há algo que a tradição africana ensina é isto: não se joga com os mortos. Funerais não são palanques. Não se usa um caixão como instrumento de vingança nem como palco de afirmação partidária. E, no entanto, é isso que está a acontecer. A morte transformou-se em palco de ressentimento. E o corpo tornou-se refém de uma luta pelo controlo da narrativa nacional.


A solução, por mais improvável que pareça, ainda é possível. Hakainde Hichilema deve deslocar-se pessoalmente à África do Sul. Não como chefe de Estado, mas como filho da mesma terra. Acompanhado por anciãos, líderes tradicionais, representantes das igrejas e vozes morais do país. Deve pedir humildemente à família que permita trazer o corpo de Edgar Lungu de volta ao seu solo natal. Não por interesse político, mas por respeito à história comum que os une.


A verdade desconfortável é esta: se um país não consegue enterrar com dignidade os seus ex-presidentes, que esperança há para os seus cidadãos anónimos? O mundo observa. África observa. E a Zâmbia tem, ainda, uma oportunidade de mostrar maturidade, de recordar que, apesar das diferenças, somos todos filhos da mesma terra. Se não o fizer agora, ficará para sempre assombrada por este momento. E o corpo por enterrar tornar-se-á símbolo de uma dignidade nacional que foi também sepultada. Ou pior, esquecida à porta de um aeroporto.


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