A elite luandense- Sousa Jamba



Nessa noite aprendi que cada bairro guarda dois mapas; um fica na conversa de sala, com talheres a cintilar, nomes próprios no lugar certo e ruas declinadas como títulos; o outro dorme na luva do volante, onde o vidro embacia, o rádio chia, a cidade respira por baixo da gravata. À mesa, a elite falava em voz baixa; lá fora, um motorista esperava com o motor ao ralenti. Entre a porcelana e o para-brisas, Luanda tinha duas cartografias que se olhavam sem se ver.


Alvalade surgiu primeiro, claro como um mapa escolar; falaram das bombas de gasolina, da Rádio Nacional, de moradias de boa cepa, de Justino Fernandes num dos alçados e de um reitor da Universidade no outro, com a Rua Comandante Stona e a Rua Norton de Matos a servirem de eixos de simetria. Eu vi também a outra planta: a do cheiro a combustível que se cola à tarde, a do rapaz que atravessa a rua com uma baguete quente, a do porteiro que sabe os nomes dos cães.


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A conversa deslizava com a segurança de quem já traçou esta cidade muitas vezes; chegou o Bairro Azul, dito zona de elite, moradias boas, poder aquisitivo que se ouve na maneira de pedir um copo de água; na minha segunda folha de atlas aparecia a costureira que apanha o autocarro antes do sol, sobe dois lanços de escada para ajustar bainhas que não irão ao pó, sorri diante de um espelho largo onde nunca se vê inteira.


Veio depois Coqueiros, bairro de doutores e de gente formada; havia o Prédio do Livro, como farol de papel, e campos de ténis e de futebol que marcam o tempo com um som seco; viviam ali famílias assimiladas que já viajavam em primeira classe nos navios. No outro mapa ouvi o plim das bolas a saltarem num saco de rede, o apito do guarda que fecha o portão, o rapaz que devolve a bola com dois toques e aprende uma pontuação que não é a sua.


Chegou Miramar, dito com gosto, como promessa de vista; Maternidade de Luanda, Embaixada Americana, casas próximas das de Alvalade, reputação assentada. No reverso vi um pulso fino com a pulseira branca do primeiro dia, vi um motorista que estaciona à sombra e treina a pronúncia de um apelido estrangeiro, vi o mar que se adivinha pelo sal nos lábios.

Convém dizer a verdade: quando aqui falo de elite, falo menos de rendimentos e mais de atributo intelectual; trata-se do capital cultural que põe livros ao alcance da mão, bons filmes à distância de uma sala, conversas que pedem referências e respondem com citações. É um estilo de vida essencialmente de classe média, feito de hábito e de rotina, que não abarca a totalidade de Luanda; dentro da própria cidade há quem traga consigo as gramáticas da periferia, códigos herdados do lugar de origem.


E acresce dizer que há um encanto inteiro em estar em boa companhia; come-se bem, conversa-se sem pressa, escuta-se ao fundo um jazz contido ou uma música de África que dá ritmo à sala; tudo procura a medida certa; e vê-se, no miolo da conversa, a preocupação de educar os filhos, o desejo firme de lhes transmitir a cultura que vale mais do que ouro.


Há ainda uma genealogia que pesa sem alarde. Os descendentes das famílias do século XIX, assimiladas e integradas na máquina portuguesa, tendem a uma discrição que dispensa aplauso; raramente proclamam ser de Luanda, deixam que a cidade fale por eles na maneira de abrir uma porta, na biblioteca que cresce silenciosa, no rigor de uma carta bem escrita. O entusiasmo mais ruidoso costuma vir de outros lados; muitos que vieram da periferia e, em 1975, entraram nas casas deixadas para trás, descobriram no novo endereço um emblema e aprenderam a dizê-lo com brilho. A pertença fez-se anúncio; a cidade, sendo a mesma, ganhou sotaques distintos.


Tenho de confessar que sou de fora duas vezes. Nasci no Huambo, em Katchiungo, numa região intensamente rural, onde o Umbundu era língua de casa e de rua; visto desse chão, havia algo de sedutor na sofisticação da elite luandense. Alguns de nós vinham de famílias que aspiravam a patamar semelhante e, no entanto, não chegaram lá; a força do que éramos mantinha-nos no nosso lugar, entre a terra e a palavra, admirando de longe as maneiras de quem, na capital, parecia mover-se com outra gramática.


Quando, porém, se alcança o centro do centro, o que se encontra é sobriedade. As casas falam baixo; o mobiliário não grita; os espaços respiram; nada se amontoa; nada pretende espantar; há uma disciplina antiga na disposição das coisas, uma ética severa e discreta, que prefere o polido ao brilhante, o útil ao exibido. E, quase sempre, nas paredes, fotografias que fazem de álbum vertical; apontam retratos e dizem nomes; descobre-se que em 1914 ou 1923 um bisavô entrou para a função pública, que uma bisavó assinava com letra firme, que a casa herdou mais do que móveis, herdou papéis, hábitos, uma caligrafia.


Nomearam ainda Catambor, Prenda, Cazenga, os chamados guetos; a frase queria contraste; o meu caderno anotou mãos com calo, telhados de zinco que falam à chuva, geradores que não desistem, crianças que traçam com giz no chão o campo e a baliza. A diferença estava nas paredes, sim; estava também nos relógios, no tempo que se compra e no tempo que se inventa.


No fim, percebi que a elite não vivia apenas nas moradias; vivia sobretudo no hábito de nomear, na posse tranquila das ruas, na certeza de que o correio chega e o toldo resiste. A outra cidade pertence a quem sabe esperar, a quem aprende a ler a geografia pelos cheiros e pelos sons. Saí daquele jantar com dois atlas na mão; um mostrava a pedra e a árvore aparada; o outro, a vida que passa entre a pedra e a árvore. Se houver ponte entre ambos, a cidade ganha espessura; se não houver, fica-se com vistas e sem horizonte.


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