No Arregaça Ninguém Passa: O “Cangalho” de Santos Bikuku- Jaime Azulay



Partiu para a longa viagem sem regresso o cidadão João Ernesto dos Santos, um verdadeiro amigo do desporto. Conhecido nas lides como um homem de surpreendentes improvisos, paixões arrebatadoras e generosidade sem limites. Proprietário do lendário “Il-76, o cangalho”, Santos Bikuku levou Angola aos céus de África e deixou gravado o seu nome na memória dos que viveram naqueles tempos únicos.

 

Nascido em terras lundas, Santos Bikuku era um empresário de origem humilde. Uma dessas personagens que a vida inventa e o povo adopta. Um ser sonhador, movido por impulsos e uma fé inabalável no desporto como bandeira da nação, que pela força das leis de Deus e pela Constituição, a todos pertence. Agora que a morte traiçoeira o levou para sempre, resta-nos ouvir o eco da sua característica gargalhada e a lembrança de uma época em que a paixão tinha, quase sempre, mais valor e serventia do que o protocolo oficial .

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Há nomes que, quando partem desta vida, não deixam unicamente a aterradora ausência e o eterno silêncio da sua voz. Existem uns que deixam marcas indeléveis e histórias que ficam a voar na memória colectiva.

 

Santos Bikuku era, sem sombra de dúvidas, um desses nomes. Um homem de paixões desmedidas. Em vida, nunca foi simples defini-lo. Talvez por essa insondável razão, o país inteiro o tenha conhecido mais como personagem do que propriamente como empresário. Agora que o seu corpo repousa do cansaço da derradeira batalha pela vida, permanece o mito do homem do “cangalho”.

 

O fenómeno Bikuku surgiu nos anos em que Angola, recém-desperta do mono-partidarismo, ensaiava passos incertos no terreno minado do liberalismo económico. Uns chamavam-lhe visionário, outros simplesmente de novo-rico aventureiro. Se bem nos recordamos, ele próprio nunca pareceu preocupar-se muito com a atribuição de rótulos, como estava em voga na época. Ele falava alto, gesticulava muito e decidia rápido, com uma impulsividade que era, simultaneamente, o seu maior defeito e a sua maior virtude.

 

Transformou o seu seu património empresarial, numa fiel extensão da sua própria personalidade. Era visivelmente desorganizado e assaz barulhento. Valorizava, acima de tudo, os afectos e fidelidades pessoais dos que o rodeavam, entre eles inveterados interesseiros. Geria os negócios como geria as amizades. Punha sempre o coração à frente da cabeça. Por vezes, tomava decisões que pareciam saídas de um filme surreal. Mas ninguém podia negar-lhe coragem nem amor ao país e ao desporto.

 

A mais célebre das suas ousadias, foi quando adquiriu uma velha aeronave soviética, um “Il-76”, herança dos tempos do Bloco comunista de Leste. Numa célebre crónica, o jornalista Graça Campos baptizou-a, com ironia, de “o cangalho de Santos Bikuku”. O nome colou. O “cangalho” era um mastodonte barulhento, pesado e fumegante. Aos poucos, tornou-se num dos símbolos de uma Angola que, em nome do desporto, viajava com emoção, mesmo sem cumprir horário e calendário.

 

Era comum vê-lo de madrugada, a cirandar aos gritos na placa do aeroporto militar de Luanda, a organizar, ele próprio, o embarque das claques da selecção nacional. Distribuía cartões de embarque improvisados no meio de gargalhadas. Ninguém sabia ao certo quando o “cangalho” partiria, ou se partiria mesmo. Finalmente vinha a pipa com combustível “jet” da Sonangol. Ligavam as mangueiras para abastecer e depois de atestados os tanques, a pesada besta rolava para a cabeceira da pista, envolvida pelo infernal assobio dos quatro reactores. Como um pato velho, levantava voo com preguiça, e depois tomava rumo a destinos como Antananarivo, Maputo, Lagos ou Kinshasa. Aboletados lá dentro, iam os adeptos de camisolas vermelhas, munidos de tambores, bandeiras e uma alegria tão contagiante e entusiasta, que dispensava qualquer plano de voo.

 

Envolvido pelo ruído dos motores e o cheiro da querosene, estava o Bikuku sorridente, a comandar as conversas com descomunais gargalhadas. Ele era assim. Um Ser que emanava algo profundamente comovente, que se traduzia num amor à pátria em estado puro. Um homem que acreditava no desporto como forma de oração colectiva. Bikuku representavava o mecenas improvável. Era sobretudo um romântico do desporto, um patriota de soluções improvidas para problemas complexos, movido por uma fé ingénua de que tudo se resolve “à maneira angolana”.

 

As viagens do “Cangalhos” eram épicas, sempre marcadas por atrasos e constrangimentos, que faziam desesperar atletas, dirigentes e os fiéis da torcida. Dias depois, quando a selecção ou os clubes regressavam com um resultado honroso, tudo se esquecia e o povo aplaudia novamente. Bikuku sorria, o país sorria com ele. Entre o caos e o afecto, assim se construiu a verdadeira lenda.

 

Com o tempo, o mundo mudou. A Angola dos improvisos começou a ceder lugar a dos regulamentos e das auditorias. Bikuku retirou-se dos holofotes aos poucos, para que ninguém sentisse a sua falta. Provavelmente, se tenha percebido que na vida tudo tem um princípio e um fim e que a sua época se despedia. Para sempre ficou a saudade do barulho alegre, daquela confusão eficiente à sua maneira. Ficaram também as lembranças do “cangalho” que, apesar de tudo, ao sol e à chuva, sempre aterrava sem ninguém se machucar.

 

Agora, Santos Bikuku voa noutra dimensão, onde não há atrasos nem turbulências. Provavelmente vai organizar novas viagens celestiais, com claques de anjos para apoiar os seus favoritos. Porque o seu coração nunca deixou de ser um estádio onde todos têm um lugar, mesmo a abarrotar pelas costuras.

 

Descanse em paz, velho sonhador. Enquanto por aqui andarmos, guardaremos o “cangalho” como testemunho de que o teu nome continuará a cruzar os céus da memória angolana.

(Jornal dos Desportos)


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