O Patriarca do Espanto- Sousa Jamba

 


Charlesbois Poity, figura mediática, professor de francês e músico, que agora nos deixou, pertence à linhagem de personagens de que um país precisa para se reconhecer; a sua excentricidade, rara e teatral, obrigava-nos a perguntar se a ironia era método ou máscara, se a exibição era vício ou destino, e se o impulso que o guiava nascia da fome de palco ou da compaixão por um público que pedia espanto.

Não era um grande cantor; por vezes desafinava, e foi precisamente aí que se tornou singular, porque acima do timbre imperfeito havia uma vocação para o espectáculo, um desejo confesso de entreter, uma insistência quase comovente em ser ouvido; as canções tinham algo de karaoké, às vezes de propaganda bem-intencionada, e no entanto deixavam um refrão na memória, como quem cola um cartaz numa parede cansada e, ainda assim, o faz cintilar.


Entrevistado, era um vendaval; gabava-se da mulher mais jovem, Sandra, citava amizades em voz alta, enumerava alunos célebres e lembrava que ensinara francês, por vezes inglês, à gente conhecida de Luanda; inventava e exagerava com um sorriso, e quem o escutava aceitava a regra tácita do anedotário: por que razão deixar a verdade atrapalhar uma boa história.


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Metia-se em querelas de bastidores, combustível para manter o nome nos corredores; quando a selecção perdia, garantia que, se o tivessem chamado, teria preparado o feitiço certo, o remédio certo, até a omeleta certa, e muitos, na ressaca da derrota, assentiam com alívio, porque todo fracasso pede um culpado e todo culpado pede um salvador.


Celebrava reconciliações em letra simples; insinuava confidências com homens de poder e com opositores conhecidos; e, fora das luzes, mantinha a sua loja de ervas, onde receitava amuletos para impotências e promoções, para casamentos inquietos e paixões não correspondidas; chegavam-lhe casos de mesa e de cama, de gabinete e de rua, e ele devolvia esperança em frascos rotulados com caligrafia antiga.

Havia, porém, um retrato mais vasto, porque Charles multiplicava-se em versões de si mesmo, como se a identidade fosse um mercado de esquina com bancas paralelas; Dr. Charles Bois Poaty, por vezes grafado Charlesbois Poity, Guapuati, Walpatir ou Boapuati, apresentava-se como comerciante de ovos, curandeiro espiritual, músico, rastafári, doutor de provável curso invisível, avô e bisavô, médium e patriarca de oito filhos e oito netos, e, com ar melancólico de quem foi mal interpretado, não feiticeiro.


O negócio dos ovos, por si só, bastaria para encher o dia; vendia-os frescos, naturais, seleccionados, trinta por caixa, com os castanhos a 3.815 kwanzas e os brancos a 3.515; repetia que os ovos são saúde, citava especialistas sem nome que os punham como segundo melhor alimento do mundo, e deixava na sombra o primeiro lugar, talvez por pudor, talvez por marketing; recusava transferências bancárias com a firmeza de quem já se queimou na modernidade e prefere a moeda que se conta com os dedos.


Mas os ovos eram apenas a fundação de um império íntimo; na sua clínica espiritual, contactável pelo 924 19 14 36, oferecia um cardápio de serviços com zelo de restaurante ambicioso, resolvendo amores perdidos e pesadelos teimosos, ejaculação precoce e maridos que vagueiam à noite, prometendo protecção total contra males diversos e tratamento com a melhor medicina natural africana para mais de cem doenças; havia ainda o Itilemba Pinganacite, nome de romance que cura sem explicar como, e uma lista de unguentos que cheiravam a folha amassada e a terra depois da chuva.


Não fornecia, insistia, fetiches para enriquecer; repetia, como quem segura Lear na charneca, que não há pacto para ficar rico, meu caro, e aplicava uma lógica difícil de refutar: se existissem abóboras a vomitar dinheiro, não seriam todos os kimbandeiros tão ricos como Bill Gates ou Elon Musk; a sua própria fortuna, dizia, viera do caminho miúdo das poupanças, moeda sobre moeda, cliente após cliente, discos vendidos, consultas marcadas, ovos e galinhas a saírem do galinheiro como notas a sair da gaveta.


O sermão financeiro vinha curto e afiado: não gastes tudo nos rolos, a beber direto, não te percas nas mulheres, nos reais, nos biquínis; a prosperidade não nasce do feitiço, nasce da disciplina; e a frase caía no chão com o peso de uma prática antiga que conhece o preço das coisas e o custo dos desvarios.


Pesava-lhe, contudo, a sombra das insinuações sobre músicos mortos; os jovens da internet, sempre eles, apontavam-lhe culpas por tragédias sucessivas, e ele respondia com dicção magoada que apenas previra o óbvio, que sem trabalho digno um artista pode morrer de fome, de doença, de falta de ocupação, um, dois, três, quatro, cinco; se alguns tombaram de hipertensão, de diabetes, de acidentes de aviação, isso acontece no mundo inteiro, e não há nisso bruxedo, há estatística.

Só a força universal tem o poder da vida e da morte, lembrava, o nosso Deus; e, logo depois, deixava um aviso que soava a bênção invertida, sou da mesma família, quem tentar ferir-me verá a sua família destruída; teologia de mão dupla, consolo e terramoto na mesma frase, doce e lâmina no mesmo bolso.


Tinha sessenta e nove anos, era bisavô, homem de muitas noites e muitos dissabores; fora a casamentos com dinheiro a voar como confete, experimentara perucas louro-pálidas e personagens que entravam e saíam de cena, e, a meio de uma conversa, deixava escapar que alguém o coçava da maneira que se sabe, confidência íntima ou metáfora elíptica que deixava quem o ouvia entre o riso e o espanto; no fim, parecia menos um indivíduo do que uma economia de si mesmo, clínica espiritual e capoeira e estúdio de gravação condensados num só corpo que vendia destino e proteína, consolo e refrão.


Os angolanos olharam-no com fascínio e irritação, porque nele reconheceram a própria contradição; mestre de línguas europeias e, ao mesmo tempo, devoto de curandeiros e ancestrais, confortavelmente urbano e profundamente tradicional, habitava a franja onde a modernidade pede método e a tradição oferece mistério; corpo e rito, riso e crendice, tudo nele coexistia sem pedir desculpa.


Falava de proezas de cama com franqueza que divertia e escandalizava, prometia soluções que a ciência não assina e a fé não desmente, convertia a própria vida em narrativa contínua; por isso a notícia da morte doeu mais fundo do que se imaginava, e muitos que nunca o viram de perto tiveram a sensação de perder um conhecido antigo, porque Poity, com todos os seus excessos e falhas, era, no fundo, um espelho falador do que somos; e, se é preciso terminar com uma certeza simples, direi apenas isto: os ovos, suspeito, eram genuinamente frescos.


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