Quando a Superfície Ri e a Profundidade Fala- Sousa Jamba



Caiu-me às mãos um excerto de entrevista entre C4Pedro e a jovem entrevistadora Sara Cuca; senti uma tristeza funda, daquelas que descem devagar e ficam a ecoar por dentro. A rapariga, nervosa, ria-se em pequenos soluços, incapaz de seguir o fio do pensamento; não compreendia o que C4Pedro ia desdobrando com calma, como quem abre um livro antigo diante de um aluno distraído. Não era, penso, simples falta de instrução; era falta de experiência, falta de vida feita, falta daquela sabedoria que o tempo e a dor ensinam. Era, sobretudo, a profundidade que alguns artistas verdadeiros, como C4Pedro, revelam quando criam e, ao criarem, interrogam o mundo, pensam a sociedade, sondam o mistério de existir.


Assim, o que podia ter sido diálogo fecundo tornou-se desencontro; ela ria, ele pensava; ela dispersava, ele concentrava; ela prendia-se ao gesto, ele abria sentido.

A certa altura, C4Pedro, com a serenidade de quem mede o peso das palavras, disse: “Não podes gostar mais do teu par de sapatos favorito do que das tuas próprias pernas.” Sara Cuca baixou o olhar, soltou mais um riso nervoso e murmurou: “Isso é profundo.” A frase, simples na forma, abre um território vasto; fala de meios e de fins, de valor instrumental e de valor intrínseco, de adorno e de essência.


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As pernas fazem parte do ser; são extensão do corpo, fundamento do movimento, veículo da presença no mundo. Os sapatos pertencem ao utensílio; são ornamento, instrumento, acessório que serve o caminhar. Preferir os sapatos às pernas é inverter a ordem; é pôr o instrumento acima do propósito; é escolher o brilho e esquecer o fundamento. Do ponto de vista fenomenológico, as pernas não são objectos que se possuem; são parte viva de quem somos, lugar do passo, do gesto, da dança. Os sapatos, por mais belos, ficam no domínio das coisas; as pernas permanecem no domínio do ser.


Daqui nasce uma ética de respeito próprio e uma nítida hierarquia de cuidado: amar primeiro o que sustenta, depois o que adorna; cuidar primeiro do que é, depois do que parece; investir primeiro na essência, depois na aparência. Fazer o contrário é alienação; fazer o contrário é ilusão; fazer o contrário é perder o centro. E a parábola estende-se à vida: não preferir ornamentos da identidade, nem aparências de estatuto, nem elegâncias de ocasião, à substância que nos sustenta. Os sapatos podem embelezar; as pernas é que nos levam.


Quem escuta atentamente as letras de C4Pedro reconhece um poeta que canta, um pensador que compõe, um artesão que trabalha sentimentos e ideias como quem amassa argila. Talvez por isso a conversa soasse desigual: ele falava desde a profundidade e pedia réplica à altura; ela, ingénua, ria; ele erguia conceitos, ela perdia o chão; ele propunha caminho, ela não saía do lugar.


Noutro momento, C4Pedro notou, com ironia leve, que fora como a Chembinha das suas canções, “chique, mas sem conhecimento.” Sara Cuca voltou a rir, sem saber talvez quem fosse Chembinha, sem alcançar o peso da referência. Para quem acompanha a sua obra, a figura é clara: a jovem do interior que chega a Luanda, tropeça no português e desmascara o artifício; vê o exibicionismo, reconhece a vaidade, atravessa a fachada. Menos ornamento, mais substância; menos pose, mais verdade; menos vitrina, mais vida.

Para compreender um artista assim, é preciso preparação e humildade; é preciso conhecer as letras, perceber o universo, entrar no seu silêncio e na sua voz. Recordo-me, nos meus vinte e tal anos, quando comecei a entrevistar músicos e escritores em Londres. Preparava-me com devoção: ouvir discos, ler contextos, estudar trajectos. Ao entrevistar Milton Nascimento, passei noites com os registos dos anos sessenta; ao conversar com Ali Farka Touré, refiz caminhos, li histórias, treinei o ouvido. Cada conversa pedia leitura, pedia escuta, pedia entrega.

Trabalhei também como apresentador na Africa FM, rádio londrina dedicada à música do continente. Aí conheci o João Mendonça, o João Pequeno da Rádio Nacional de Angola; sabíamos ambos que receber um convidado é mergulhar a fundo, compreender o que move, de onde vem, o que diz quando parece só cantar. Os grandes músicos são, muitas vezes, poetas disfarçados; a profundidade não se oferece a quem chega desprevenido; a profundidade pede preparo, pede respeito, pede tempo.


As melhores revistas de música entendem isso. A Rolling Stone entende; a Vibe entende; os bons editores entendem. Para escrever é preciso paixão, disciplina, reverência pelo ofício. O erro de certa geração é confundir fama com substância, ruído com obra, presença com permanência. Falta respeito por quem cria; falta amor à arte que os faz aparecer. E é justamente essa troca de valores, essa inversão entre parecer e ser, que C4Pedro expõe, critica, corrige.

Recordo ainda a encomenda de uma revista americana que me pediu um perfil de Harry Belafonte. O texto não saiu, mas a preparação ficou: meses a ler, meses a ouvir, meses a ver entrevistas e a aprender pausas. Íamos encontrar-nos em África e não aconteceu. 


Cheguei, porém, ao ponto de saber de cor o enredo, as notas, os silêncios. O mesmo fiz na literatura. Um dia, V. S. Naipaul, Nobel da Literatura, surpreendeu-se por eu ter lido a obra inteira e por lhe levantar questões que muitos evitavam; discutimos, insistimos, saí. Ficou a lição: sem preparação não há diálogo; sem respeito não há encontro; sem estudo não há entendimento.


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