Que falta de vergonha- Sousa Jamba



A cada estação em Malange, enquanto se percorre a estrada sinuosa por Cahombo, onde os embondeiros se erguem como sentinelas ancestrais, há momentos que revelam a alma de Angola. Foi numa dessas viagens que encontramos uma motorizada abandonada à beira da estrada, a sua carga de bebidas - duas caixas de Cuca, duas de Nocal - intacta sob o implacável sol angolano. O dono tinha ido procurar ajuda, desaparecendo na poeira vermelha de Malange, deixando os seus bens à mercê de estranhos que passavam. Quando o encontramos e o trouxemos de volta, o que nos impressionou não foi a avaria mecânica que o tinha deixado preso, mas a perfeita preservação da sua carga - nem uma única garrafa mexida, como se estivesse a ser guardada pelos espíritos dos próprios antepassados.


Os aldeões diriam, falando num Kimbundu suave, que tal contenção surge do medo da feitiçaria, mas por baixo dessa explicação reside uma verdade mais profunda. Nessas comunidades rurais, a honra estende-se por gerações como os padrões em espiral do pano samakaka, ligando família a família, nome a nome. A transgressão de uma criança torna-se a vergonha da família, infiltrando-se no tempo como o vinho de palma na terra sagrada, manchando avô, avó, tia e tio. Quando os vizinhos falam de uma criança, falam de linhagem: "aquela pertence à família tal e tal", e nessas palavras residem tanto o orgulho como o aviso, tão pesados como as declarações de um soba ou de um ancião.




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No entanto, em Luanda, onde as ruas pulsam com um ritmo diferente e as torres de Kilamba se erguem como estranhas contra o céu, testemunhei o oposto dessa virtude rural. Um camião, apanhado por semáforos numa das avenidas, tornou-se subitamente presa. Homens em fatos que custam mais do que a colheita anual de mandioca de um camponês, mulheres em quitengees caros, crianças em uniformes escolares - todos convergiram para ele como uma nuvem de formigas kissonde frenéticas, mãos estendidas para sacos de fuba e arroz. A cena desenrolou-se sob o mesmo sol que brilha sobre a dignidade silenciosa de Cahombo, mas aqui a vergonha tinha perdido o seu poder de conter, e a honra tinha-se tornado tão obsoleta como a fantasia de carnaval do ano passado.

Nesta nova Luanda, onde o betão substituiu o quintal tradicional, a família nuclear está isolada, desligada do clã mais amplo que outrora dava sentido à vida como as raízes de uma árvore mulemba. A falta de vergonha manifesta-se em exibições que fariam corar até um guerreiro bailundo da era colonial - mulheres nas redes sociais a gabar-se de casos com homens casados com a mesma casualidade com que poderiam discutir o preço do jindungo no mercado do Panguila.


A linguagem tornou-se tão grosseira como a erva, despojada dos provérbios respeitosos e ditos sábios que outrora decoravam a fala dos nossos anciãos como missangas no pescoço de uma donzela. As jovens discutem assuntos íntimos com uma franqueza crua que chocaria até o kimbanda mais liberal, enquanto em Luanda, burlões coletam kwanzas para causas fictícias com a mesma lábia que outrora contava as nossas histórias tradicionais.


Este embrutecimento urbano do espírito contrasta fortemente com a cuidadosa preservação da dignidade na aldeia, como uma máscara muquixe de madeira fina exposta ao lado de uma imitação barata de plástico. O caminho para a recuperação reside em retornar à sabedoria dos nossos antepassados, não necessariamente na kubata literal da tradição, mas na recuperação do esumbilo (respeito), esunga (integridade) e usumba (medo) - aquelas qualidades que outrora faziam o nosso povo erguer-se tão direito e orgulhoso como as árvores mulemba.


Pois, no fim de contas, esta crise de vergonha revela uma crise mais profunda de autoestima, tão profunda como a divisão entre a Marginal cintilante de Luanda e os seus musseques. A nossa sociedade deve encontrar o caminho de volta a um terreno mais elevado, deve recuperar o seu sentido de dignidade, não através do medo do kindoki, mas através do orgulho genuíno que outrora fazia as nossas avós caminharem com a cabeça erguida como as falésias da Tundavala.


Chegou a hora de rejeitar esta cultura de falta de vergonha, de nos erguermos dela como a fénix a emergir da névoa matinal sobre o Huambo. É hora de Angola se lembrar que a verdadeira riqueza não reside no que podemos agarrar, mas no que podemos preservar - a nossa dignidade, a nossa integridade e o nosso respeito pelos laços comunitários que nos fazem quem somos.


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