Nesta pequena esquina do tempo, é meu desejo que os relógios façam uma pequena paragem no seu eterno movimento rumo a um futuro ainda incerto e eu possa reflectir com cada leitor, sem pressas, o que foi a gesta das lutas libertárias pró-independentistas em Angola, de modo a perceber-se quanto os estudos neste domínio do conhecimento têm andado todos estes anos carecidos de trabalhos sérios.
De facto, os saberes relacionados com a história contemporânea de Angola, de 1950 para cá, têm sido objecto de toda uma sucessão de interferências a reboque de silêncios e hermenêuticas adulteradas. Em primeiro lugar por manipulações do poder político dominante em Angola com a sua “fecundíssima fauna” de imbecis; e depois pelos círculos intelectuais e académicos na própria Angola, a que se associam também as esferas da intelligentsia portuguesa e brasileira. Uns e outros, na essência, não se diferenciam nos métodos pouco ortodoxos que utilizam.
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Para exemplificar, trago a este espaço os raros estudos que se publicam relativamente à tragédia vivida por Viriato da Cruz, um dos maiores próceres do nacionalismo angolano que findou os seus dias humilhado e violentado na China depois de ter sofrido horrores às mãos dos seus próprios companheiros do MPLA, como iremos ver mais à frente. Os registos de análise e interpretação saídos desses estudos quase sempre são do mesmo quilate: conclusões grosseiras, deturpadas, por vezes tão desonestas que desafiam as barreiras da inteligência.
São tantas as ocultações sobre Viriato (e não só) que se colhe a impressão de haver, especialmente nos círculos do conhecimento e nas catedrais de investigação das universidades, uma perda do que se pode designar por bússola. Desta perda resulta um pântano sombrio de trabalhos plasmados pela falta de rigor e objectividade. E, acima de tudo, por interesses alheios ao conhecimento da História.
Resgatar deste crisol de deturpações a verdade sobre a tragédia política e humana de Viriato impõe-se, qual um dever de construção da consciência histórica nacional do povo angolano. No entanto, um sério “apego sujo” se interpõe no caminho deste dever histórico: o mito Agostinho Neto. Mito diante do qual os historiadores capitulam contaminados pela hipocrisia e pela propaganda do regime político de Luanda que projecta de Neto a imagem nietzcshiana do super-homem. Um deus de carne e osso. Claro que, aplicado a Neto, este conceito de super-homem peca por uma deformação histórica fantástica. Porém, o que mais espanta é haver universidades que se dispõem, na qualidade de instituições, a colaborar no culto a esta transfiguração (contagiadas também pela “síndrome do culto ao salvador”) e a converter Neto numa personagem, a bem dizer, dotada de espessura religiosa, acima do bem e do mal.
Viriato da Cruz, pai fundador e arquitecto do MPLA em 1960, é inegavelmente uma das maiores vítimas da esquizofrenia sectária e conservadora do bando de chacais que comanda os destinos do Estado angolano. Do cérebro de Viriato brotou o projecto de criação daquela formação política, foi ele que lhe deu vida, identidade e músculo militar para iniciar a luta insurreccional. Contudo, desde cedo que invariavelmente se assiste ao contínuo assassinato simbólico da memória de Viriato tendente a torná-lo ignorado aos olhos das novas gerações. No panteão do MPLA só existe um nome, o de Agostinho Neto.
A fantasia que sustenta o mito Neto e a aura de “sacralização” que se lhe empresta encarna algo de extremamente nocivo para o imaginário da sociedade angolana, permanentemente sujeita a manipulações, as mais absurdas, com relação aos factos da História. Neto cometeu crimes hediondos no período da luta armada de emancipação. Por narcisismo, inveja, vingança e despeito ordenou a eliminação física de dúzias de companheiros seus, entre os quais figuras centrais na hierarquia política e militar do MPLA, da estirpe de um Daniel Chipenda, que se salvou por uma unha negra, ao passo que outros não tiveram a mesma sorte. Terminaram os seus dias sacrificados pela vesânia tirânica de Neto. Dir-se-á que o ditador travava uma guerra consigo mesmo ao aniquilar aquele punhado de comandantes, todos com notáveis provas dadas nas adversas condições da luta guerrilheira.
Na mesma senda de loucuras políticas, Neto deixou um inextinguível rasto de sangue na sua curta presidência à testa do Estado por ele aparelhado de falsas estruturas e conceitos a que chamou “Estado popular e socialista”, quando na realidade empurrou Angola para a órbita do que havia de pior nas geografias políticas do mundo. Inaugurou um Estado terrorista, de feição nacionalista radical, comandado por uma burocracia xenófoba, unipartidária, militarista, policialesca, excludente, injusta e intolerante e inimiga das liberdades básicas essenciais. Um poder político detestável, hostil à verdade e à crítica, cujo “grande chefe” reproduziu no mais depurado estilo autocrático as velhas taras psicopáticas de Estaline, de Mao Tsetung e de outros facínoras políticos que estiveram ou estão à testa de governos no mundo. Foi assim que, amparado num pretexto vil, Neto dizimou a ferro e fogo grande parte da militância pró-soviética do MPLA no sempre lembrado 27 de Maio de 1977 e, concomitantemente, promoveu uma matança civil nunca vista contra pessoas sem vínculos políticos oficiais e sem nenhum outro tipo de militância. Uma tragédia que deixou o país de luto até hoje. Somando-se a este assassinato em massa a perseguição movida contra toda a velha guarda pensante (social-democrata) do Movimento apodada de “traidora” e aviltada em calabouços e torturada selvaticamente.
Uma paisagem macabra logo nos alvores da independência nacional responsável por comprometer a chave política da esperança ante um futuro colectivo que se desejava promissor. Um futuro que redundou em desastre e sofrimento para o seu povo. Sem esquecer, logo no início da vida do MPLA, a conduta atrabiliária de Neto na Conferência Nacional do Movimento nos idos de 1962 ao proibir que a lista rival de Viriato da Cruz fosse escrutinada. Um acto de prepotência que suscitou nos delegados presentes à assembleia uma pesada atmosfera de insatisfação e constrangimento. Por último, sem o mais pequeno átomo de decoro, declarou que iria tomar a presidência do Movimento para si, quer concordassem ou não com ele. Um gesto de desaforo e temeridade que confirma o tipo de móbil que lhe incendiava os subterrâneos da mente: o poder soberano pertencia-lhe por inteiro, sem compartilhamentos.
Nesta equação de supremacia absoluta, Neto considerava-se investido de qualidades superiores, de ser o predestinado para ocupar o trono do Movimento. Ele celebrava-se a si mesmo como o único capaz de ter mão segura sobre o leme do partido-guerrilha. Nenhum outro traço, por sinal, é tão revelador quanto este (a síndrome do escolhido) para se aquilatar da personalidade de Neto, o seu desmesurado egocentrismo cristalizado num forte pendor narcisístico que havia de se manifestar inalteravelmente no sentimento e na vontade de que acima dele não podia haver mais ninguém. O que veio depois foi consequência desta afirmação de superioridade plena do seu poder, que fez da força bruta o seu principal pilar. Reforçado mais tarde pelo “culto à personalidade e aceite pela linguagem da mudez do seu exército de cortesãos submissos e bajuladores”. Por incentivo desta forja de aplausos dos seus veneradores, nascia então o ditador idolatrado até ao presente.
Ante o exposto, pode concluir-se que o carácter “sagrado” e “messiânico” que os seus panegiristas e facciosos lhe outorgam encerra uma carga subjectiva debaixo da qual se escondem imensos perigos. Juntem-se a isto os interditos e as censuras sob a alegação de que não há nada ou pouco a discutir na biografia política de Neto, por eles qualificada de exemplar, a não ser para o incensar pelas suas “superiores qualidades, sobretudo humanas e literárias”. Claro que se trata de um argumento sem nenhum valor, na medida em que se sabe quão controversos são os interstícios dessa biografia. O tipo humano e ideal criado em torno da figura de Neto (canonizado como o arquétipo de pai da pátria, o herói fabuloso e único) assemelha-se a uma bomba que urge desarmar, para utilizar uma noção do escritor polaco Adam Zagajewski. Uma bomba de efeitos nefastos, tantos os descaminhos e os erros trazidos ao processo de reconciliação nacional. Sem esquecer as graves rupturas e escombros havidos no passado e que têm abalado a grande família MPLA, desde sempre confrontada com ciclos permanentes de turbulência e divisões internas, pois nem toda a militância (incluindo as franjas simpatizantes) aceita estes delírios ficcionais.
(*) Jornal Público (18.05.25)
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