Justiça e Memoria em Angola- Sousa Jamba



Há momentos em que uma nação é forçada a atravessar, descalça, as brasas do seu próprio passado — levando numa mão uma coroa de memória e, na outra, uma balança de justiça. No cinquentenário da sua independência, Angola encontra-se precisamente nesse ponto de inflexão.


Não estamos apenas a assinalar uma efeméride; estamos a reabrir arquivos, a desenterrar silêncios, a convocar fantasmas. Em sociedades marcadas por conflitos internos, a memória raramente é neutra — é contraditória, fragmentada, disputada e, muitas vezes, profundamente dolorosa.


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A eventual atribuição de uma medalha a Dr Jonas Malheiro Savimbi não constituiria um gesto de reconciliação, mas antes um acto de distorção da memória colectiva. A sua importância no contexto da luta de libertação é inquestionável; no entanto, o seu legado permanece indelevelmente associado a purgas internas, assassinatos políticos etc. Honrá-lo oficialmente seria interpretado por muitos como uma legitimação desses actos, e não como um convite ao reencontro nacional.


Contudo, o Estado angolano tem demonstrado alguma capacidade de discernimento histórico. Foi prestada homenagem, por exemplo, a Lot Malheiro Savimbi, pai do líder da UNITA, falecido enquanto prisioneiro político do regime colonial. Foram igualmente reconhecidos nomes como Judith Chinakussoki Pena, irmã do Dr Jonas Malheiro Savimbi, e quadros da UNITA como Pedro Jonatao Chingunji. Estes gestos revelam que é possível reconhecer o sofrimento e o contributo de determinados indivíduos sem, com isso, glorificar figuras cuja trajectória permanece controversa. O 

Dr Jonas Malheiro Savimbi foi finalmente sepultado, em 2019, na sua aldeia ancestral  de Lopitanga — um acto simbólico aguardado durante muitos anos. Mas interrogo-me: onde repousam os corpos de Tito Chingunji, Helena Chingunji ou Wilson dos Santos? Foram assassinados às mãos dos seus próprios companheiros de luta. Morreram sem julgamento, sem sepultura condigna, sem qualquer lamento público. São vítimas de um projecto político que muitos ainda insistem em celebrar sem reservas. A memória destes homens e mulheres tem de integrar o discurso nacional — ou estaremos a aceitar, tacitamente, que há mortos com mais valor do que outros.


Antevejo, e com razão, as críticas que me poderão ser dirigidas: “E as vítimas do 27 de Maio de 1977? E os que sofreram com as purgas internas do MPLA? E os crimes, amplamente documentados, cometidos por elementos ligados ao partido no poder?” Temo ser acusado de traição, de me tornar um porta-voz do regime, de ter, em suma, “vendido a alma”.


Ontem mesmo publiquei um breve texto de gratidão pela condecoração que me foi atribuída. Horas depois, suprimi-o, após ter sido alvo de uma enxurrada de insultos. Não o apaguei por arrependimento, mas porque me vi impossibilitado de responder com serenidade e lucidez aos argumentos que me eram dirigidos.


Contudo, é necessário reconhecer que o Estado angolano já não vive num regime de negação absoluta. Processos de reconciliação estão em curso e algumas figuras começam, ainda que timidamente, a ser responsabilizadas. Sim, o caminho é desigual. Sim, os critérios podem parecer arbitrários. Mas é, apesar de tudo, um sinal de que algo está a mudar.


Recusar a homenagem a Dr Jonas Malheiro Savimbi não significa ignorar os crimes cometidos por outros actores políticos. Não é dizer que apenas um lado errou. Mas é intelectualmente e eticamente falacioso cair na armadilha da equivalência: como todos cometeram excessos, todos merecem o mesmo reconhecimento. Essa lógica apaga as especificidades de cada transgressão e inviabiliza qualquer possibilidade de responsabilização.


Devemos analisar cada acto histórico com proporcionalidade e sentido crítico. O contrário é perpetuar uma cultura de impunidade onde tudo se relativiza — e, por isso mesmo, tudo se repete.

A liderança actual da UNITA não é herdeira moral automática das decisões do seu fundador. Seria injusto e contraproducente exigir-lhe penitência por actos que não praticou. O seu papel no contexto político contemporâneo é outro — e deve ser avaliado à luz da sua conduta presente.


Todavia, essa nova geração tem a responsabilidade de olhar para o passado com honestidade. Tem de reconhecer que o seu percurso histórico inclui não apenas episódios de resistência, mas também momentos de repressão. Que foi, simultaneamente, um movimento de libertação e de silenciamento. Essa consciência crítica é o verdadeiro alicerce de uma reconciliação nacional autêntica.


A pátria não se constrói sobre mitos inabaláveis, mas sim sobre verdades enfrentadas com coragem. Honramos o avô Lot Malheiro Savimbi porque sofreu nas mãos da opressão colonial. Prestamos tributo a Tia Judith Chinakussoki Pena porque a reconciliação exige empatia que transcenda as filiações partidárias. E compreendemos, com igual sobriedade, os argumentos daqueles que se opõem à glorificação de Dr Jonas Malheiro Savimbi. Não para o apagar da História, mas para que a História possa conter, sem disfarces, os seus erros — e os seus mortos.

Angola precisa de uma memória nacional que não seja partidarizada, nem selectiva. Uma memória suficientemente ampla para incluir a glória e a vergonha, o orgulho e o arrependimento. Uma memória onde todos — mesmo os esquecidos — possam ser lembrados com justiça.


E se a justiça tarda, que ao menos a memória não falhe.


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