Tive contacto com o acórdão do Tribunal da Relação que apreciou o pedido de providência cautelar interposto relativamente à realização de uma actividade agendada para o dia 8 de Maio de 2025. A leitura daquele acórdão foi, sem exagero, uma daquelas experiências em que o operador jurídico não sabe se deve rir, chorar ou simplesmente rever a definição de juridicidade. Envolto em fundamentos que mais pareciam argumentos retirados da prateleira das conveniências do que das bibliotecas do Direito, o acórdão decidiu por um caminho que, para mim, expõe não apenas a fragilidade da argumentação apresentada, mas uma tendência cada vez mais evidente de sacrificar a Constituição no altar das sensibilidades institucionais.
Comecemos pela ideia central do acórdão: a tese de que a realização da actividade proposta, uma sessão de diálogo nacional com participação de membros da sociedade civil, académicos, advogados e outros interessados, poderia causar um dano irreparável à Ordem dos Advogados, colocando em causa o seu prestígio, a sua credibilidade e a confiança institucional que deve inspirar nos cidadãos. Essa alegação, repetida como um refrão num coro em eco, pretendeu assentar-se no requisito do periculum in mora, segundo o qual o tempo, se não contido por uma medida urgente, poderá destruir aquilo que não mais se recupera.
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Ora, é precisamente aqui que reside a primeira grande desonestidade argumentativa. O periculum in mora é, sim, um requisito fundamental das providências cautelares. Mas sua verificação depende de um dano concreto, iminente, irreparável ou de difícil reparação. Não basta levantar hipóteses ou receios subjectivos. Deve haver risco verdadeiro, não suposições revestidas de linguagem grave. E pergunto: que prejuízo irreparável, em termos reais e mensuráveis, pode advir da simples realização de um evento digamos jurídico-pedagógico? Desde quando a partilha de ideias ameaça instituições? O que se vê aqui é um uso oportunista do instituto cautelar para mascarar a incapacidade de lidar com o dissenso. A Ordem teme o espelho, porque ele reflete não apenas a imagem construída, mas a essência esquecida.
Num outro plano, a decisão ignora que o risco de dano institucional, ainda que possível, deve ser avaliado com base em parâmetros objectivos. A jurisprudência e a doutrina são claras: o temor abstracto não é suficiente. Sérgio Amaral, citado no próprio acórdão, lembra-nos que a tutela cautelar exige um juízo de prognose que, embora não exija certeza, exige verosimilhança concreta. No caso em apreço, não há nenhuma análise crítica e detalhada do conteúdo programático da actividade, nenhuma prova de que se pretendia agir à margem da lei, nenhuma demonstração de que os organizadores tencionavam usurpar competências exclusivas da Ordem. Pelo contrário, o que se depreende é que o evento visava contribuir para o debate jurídico sobre temas de relevância nacional, precisamente no exercício das atribuições previstas no artigo 3.º da Lei 28/96.
E aqui reside outra ironia: o acórdão, ao defender que a realização da actividade excede as atribuições legais da Ordem dos Advogados, esquece-se que essas atribuições não são exaustivas, mas exemplificativas. A advocacia, como está plasmado no artigo 193.º, n.º 2 da Constituição da República de Angola, é uma instituição essencial à administração da justiça. E não há justiça sem debate, sem transparência, sem diálogo com a sociedade. O advogado é, por definição constitucional, um servidor da justiça e do direito. Reduzir a sua intervenção à mera representação nos autos ou à defesa nos tribunais é amputar a sua missão, é condená-lo ao silêncio técnico, ao mutismo social. A Ordem não é uma ilha; é, ou deveria ser, uma ponte.
Ao afirmar que “não se encontra plasmado, quaisquer atribuições, relacionada com o evento agendado para o dia 8 de Maio”, o tribunal revela uma leitura redutora, formalista e perigosamente conservadora do papel da Ordem. Uma leitura que, ao invés de fortalecer o Estado Democrático de Direito, o fragiliza. Porque impede a Ordem de se renovar, de dialogar, de sair dos seus muros para compreender o mundo em que opera. O papel da advocacia não se esgota na defesa de casos; ela também se compromete com a formação da cidadania, com a produção normativa, com a fiscalização da legalidade. Aliás, como referem as alíneas h) e i) do artigo 3.º da Lei 28/96, compete à Ordem “contribuir para o aperfeiçoamento da elaboração do direito” e “emitir parecer sobre projectos legislativos”. Ora, se a Ordem pode opinar sobre projectos de lei, como não pode, então, participar num evento público que visa auscultar ideias e fomentar o debate sobre os mesmos temas?
A fundamentação oferecida pelo tribunal revela, em última instância, uma leitura institucionalmente proteccionista, que confunde a defesa do prestígio com o isolamento. Como se a Ordem se tornasse mais respeitável por se esconder do escrutínio público. Como se o respeito se construísse no silêncio, e não na actuação. O prestígio da Ordem não está na sua capacidade de evitar o debate, mas na sua coragem de protagonizá-lo. Não está em impedir actividades externas, mas em qualificá-las, em liderá-las. O receio de perder credibilidade por causa de um evento é, em si, a maior prova da fragilidade dessa mesma credibilidade. Quem tem medo do vento, jamais levanta voo.
Outro ponto que merece atenção é a análise do requisito da aparência do bom direito (fumus boni iuris). A decisão sustenta que este se encontra preenchido, partindo do pressuposto de que a actividade em causa representa uma actuação à margem das atribuições legais da Ordem. Mas como já demonstrado, essa leitura é enviesada. Ignora o texto constitucional, desconsidera o espírito do artigo 3.º da Lei 28/96, e recusa ver o evidente: que a advocacia tem um papel social, e não apenas processual. Há uma diferença abismal entre agir à margem da lei e agir para além da letra da lei, no espírito da Constituição. A primeira é ilegalidade; a segunda é evolução.
A decisão, no fundo, escolhe proteger uma imagem institucional mesmo que isso implique limitar liberdades, interditar vozes e reduzir a advocacia a uma função subalterna do sistema judicial. Não se trata de Direito, mas de manutenção de status. É como aquele dono de vinhedos que, temendo o vinho novo, decide beber apenas da reserva antiga, mesmo quando o paladar da sociedade já mudou. A toga, nesse acórdão, serviu mais para esconder do que para revelar.
Do ponto de vista do interesse público, a decisão também falha em sua análise. Alega-se que o deferimento da providência não acarreta prejuízo ao interesse público. No entanto, essa conclusão é tão estreita quanto a fenda de uma fechadura. Porque o interesse público não se esgota na legalidade formal; ele exige a promoção de um espaço democrático, participativo, plural. Impedir a realização de uma actividade com base em meras suposições compromete não apenas o direito dos organizadores, mas também o direito da sociedade à informação, à crítica e ao debate. O tribunal aqui não protegeu o interesse público; protegeu a quietude institucional.
A Ordem dos Advogados deveria ser a primeira a defender o espaço público da palavra, da crítica, da construção conjunta. Ao recorrer ao argumento do “risco institucional”, consagra-se o medo como critério jurídico. O medo do discurso, da diferença, da interpretação ampla das normas. E isso é perigoso. Porque quando o Direito começa a justificar o silenciamento com base na estabilidade, a democracia começa a morrer em silêncio.
Se o Direito tem um dever, é o de libertar e não aprisionar. Se a advocacia tem uma vocação, é a de iluminar zonas de sombra, não de aprofundá-las. E se a jurisprudência tem uma missão, é a de garantir que os princípios da Constituição não sejam reduzidos a notas de rodapé nas decisões judiciais.
A decisão em causa é, pois, o retrato de uma inquietante inversão de papéis: o Direito, que deveria ser farol, virou trincheira. A Ordem, que deveria ser vanguarda, virou bastião do imobilismo. E a jurisprudência, que deveria corrigir abusos, tornou-se seu instrumento.
Sim, foi um cúmulo. Mas mais do que isso, foi um alerta. Um aviso de que o Direito, quando perde o sentido da sua função social, transforma-se num conjunto de normas ocas, prontas a serem usadas conforme a conveniência de quem as interpreta. O prestígio da advocacia não se defende com silêncio, mas com voz. E se a toga teme o debate, então talvez tenha esquecido porque existe.
Yolene Vieira
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