A Curiosa Reabilitação da Paternidade- Sousa Jamba


Ontem celebrou-se o Dia do Pai. Como muitos, percorri distraidamente os tributos esperados nas redes sociais; pais a sorrir com os filhos; palavras de gratidão; imagens de ternura e pequenas declarações nostálgicas. Mas houve uma publicação no LinkedIn que me deteve por completo. Era de uma antiga colega da universidade; uma profissional hoje prestigiada, que escreveu de forma comovente sobre a importância dos pais na formação de cidadãos íntegros; na criação de estabilidade emocional; na construção das fundações familiares.


O texto era sincero e bem articulado; no entanto, o que me impressionou não foi a eloquência; foi a memória que, de súbito, despertou.

Há cerca de quatro décadas, nos seminários universitários e cafés noturnos de Londres, esta mesma mulher afirmava, com veemência, que os pais eram dispensáveis. Recordo-me nitidamente: defendia que os homens eram pouco mais do que dadores de esperma; que o futuro da parentalidade estava nas mãos das mulheres; que bastava garantir bom ADN e meios económicos para criar uma criança sozinha. “Não precisamos de pais; apenas de genes de qualidade e autonomia”, dizia ela. Éramos jovens; intelectualmente afoitos; inebriados com a novidade das ideias radicais.


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Mas o tempo passa; e a vida, com os seus caprichos, reescreve certezas com surpreendente naturalidade.

A mulher que outrora proclamava a irrelevância da paternidade casou-se com um homem sereno e discreto; conheci-o certa vez. Têm três filhos; e nas fotografias que partilhou, via-se um lar harmonioso; um jardim tranquilo; adolescentes sorridentes; cartões escritos à mão com palavras de gratidão. O pai ali retratado era, nas suas palavras, “o coração da casa; o pilar da família; o homem que nos tornou inteiros”.


Não a censuro por ter mudado de opinião; admiro quem revê convicções à luz da experiência vivida. Mas não posso deixar de lembrar como, em nome de teorias, tantos papéis foram descartados com uma ligeireza inquietante.


E, em meio a tantas celebrações públicas, lembrei-me também dos pais ausentes; não os que fugiram, mas os que foram afastados; homens que choram em silêncio por não poderem ver os filhos; que foram impedidos de participar, de educar, de amar. Há mães que, movidas por mágoa ou orgulho, se dedicam a cortar os laços com precisão cirúrgica; que contam histórias distorcidas; que pintam o pai como um monstro; que alimentam a criança com camadas de invenções; como se a relação, afinal, não tivesse exigido dois.


Esquecemo-nos com demasiada facilidade de que a vida (e a criação de uma nova vida) é obra partilhada. Quando as relações se rompem, a criança não deve herdar os escombros emocionais. Mas isso acontece; de forma rotineira; com uma crueldade surda.

No Planalto Central de Angola conheci um agrónomo; um homem calado, aplicado, que geria uma grande fazenda nos arredores de Andulo. Adquirira também pequenos lotes de terra que cultivava com rigor. Após um divórcio amargo (provocado, em grande parte, pela convicção da sua mulher de que ele não era suficientemente bom para ela) viu-se abandonado. A mulher trocou a estabilidade modesta pela ilusão de conforto como amante de um homem rico. E, no processo, afastou os filhos; escondeu-os do pai; pintou-lhe uma caricatura vil.


Depois chegou a pandemia.


Foi o irmão mais novo do agrónomo quem, por acaso, descobriu onde estavam as crianças. Passou a levar géneros alimentares àquela casa. Um dia, no Andulo, viu uma jovem com sacos a um canto da estrada; havia algo de familiar naquele rosto; era a sobrinha. Tinha 19 anos e partira de casa; procurava o pai; queria reencontrá-lo.


O reencontro foi calmo e profundo. O pai acolheu-a de imediato; ela matriculou-se num curso de enfermagem em Caála; arranjou um quarto modesto com uma família de acolhimento. Aos fins de semana, o pai levava-lhe alimentos e apoio. Ela floresceu; não só nos estudos, mas na alma. Disse-me que toda a vida ouvira falar dele como um tirano; encontrou, afinal, um homem terno, contido, gentil.


O irmão mais novo juntou-se depois. A casa tornou-se um espaço de afetos reencontrados; jogavam futebol; construíram um pequeno campo de basquetebol no quintal; andavam de skate; riam. Foi um renascimento discreto, mas inteiramente humano.

Curiosamente, a mulher tinha três filhos; dois com o agrónomo, e um de outra relação. E foi este mesmo homem — tantas vezes vilipendiado — quem acolheu todos. O terceiro filho, que não era seu, visitava-o com frequência; ele chamava-o “meu filho” com naturalidade; dizia apenas que “é irmão dos meus; é como se fosse meu”. Nunca estabeleceu fronteiras.


A ex-mulher, por sua vez, foi abandonada pelo homem rico; o seu nível de vida deteriorou-se gradualmente; passou a procurar formas de sobrevivência; chegou a propor um pequeno negócio de transporte de alimentos para a Luanda. Durante a pandemia, vi-a; viera visitar a filha e sondar oportunidades. Recusava-se, ainda assim, a dirigir-se ao ex-marido; talvez por vergonha de o ver prosperar. 


Ele, entretanto, refizera a vida; casara-se com uma mulher serena que geria uma criação de galinhas. A ex-mulher tentou semear discórdia; procurou desestabilizar a nova relação; mas foi travada — pelo homem e, sobretudo, pelos filhos. Estes deixaram claro: não permitiriam que ela voltasse a destruir.


É evidente que nem todos os pais se elevam à altura da missão. Há pais negligentes; homens que talvez devessem manter-se afastados dos próprios filhos; homens que não conseguem lidar com o veneno que carregam e que, quando se aproximam, apenas espalham mais amargura. Há também aqueles que procriam indiscriminadamente; orgulham-se de “espalhar a semente”, mas fogem horrorizados da ideia de criar o que semearam. Engravidar uma mulher é fácil; educar uma criança exige carácter, resiliência e entrega.


E é por isso que o tempo tem vindo a separar, cada vez mais, a paternidade biológica da verdadeira paternidade: a que se traduz em presença; em sacrifício; em esforço. Criar um filho implica frustrações e tropeços; mas quando vemos uma criança florescer e sabemos que fomos parte dessa floração, há nisso uma alegria silenciosa — e absoluta.


Nem sempre corre como se deseja; os filhos afastam-se; os sonhos ruem; mas desistir não é uma opção. Ser pai é aceitar um trabalho de casa perpétuo; uma tarefa vitalícia que se reescreve diariamente.


Sim, surpreendeu-me a publicação da minha antiga colega. Mas também me comoveu. Entre as linhas do seu texto havia uma verdade serena; o reconhecimento de que os velhos slogans nem sempre sobrevivem ao embate da vida; e que, por vezes, aquilo que em tempos considerámos arcaico — como a figura do pai — revela-se afinal como absolutamente essencial.


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