O Sabor Persistente de Portugal- Sousa Jamba



Algures entre Luanda e o Huambo—nessa longa fita de asfalto abrasado onde, por vezes, uma cabra se atravessa na estrada como quem impõe um momento de reflexão filosófica—o meu Jeep decidiu desistir. Nada de explosões dramáticas nem de fumo cinematográfico. Apenas um suspiro resignado e depois, silêncio. Como se o veículo, com todo o direito, se tivesse desinteressado da viagem.


Ali fiquei, sozinho no mato, a ponderar o sentido da vida e a utilidade das garantias mecânicas, quando um Hilux surgiu ao longe—com a elegância serena de quem já salvou muitos viajantes sem grande alarido. Ao volante vinha um português, animado, cabelo claro, com aquele ar de competência silenciosa que só se adquire depois de se ter consertado um motor diesel num feriado. Ao seu lado, a jovem esposa, luminosa e ligeiramente queimada pelo sol, com o olhar meio perplexo de quem acabou de trocar o Porto por uma escola em Huila.



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Pararam sem hesitar. Nada de formalismos ou perguntas sobre passaportes. Apenas um lacónico: “O que é que aconteceu antes de parar?”—uma pergunta mecânica, sim, mas que também serviria para terapia.

Minutos depois, ele estava mergulhado até aos cotovelos no motor. Ela, com um sorriso calmo, disse-me que tinha acabado de chegar a Angola e queria ensinar português numa escola secundária. Ele reapareceu com o diagnóstico: filtro de combustível entupido, ligações soltas, bloqueio de vapor por excesso de calor. Entrou no Jeep, deu à chave e, como que por milagre, o motor voltou à vida.


Ficámos amigos, naturalmente. Estas coisas acontecem em Angola. Mais tarde, através de mim, encontrou trabalho que o levou à Zâmbia, RDC e Malawi. Costumo dizer, a brincar, que tudo o que ele precisava para atravessar África era uma caixa de ferramentas e um instinto para parábolas. Mas aquele momento—no meio de nada—foi mais do que um arranjo improvisado. Foi uma parábola em calções.


Para os portugueses, Angola continua a ser o ponto natural de reentrada em África—tal como foi em 1482, quando as caravelas desceram o rio Congo com crucifixos, pólvora e bacalhau salgado. De todas as antigas colónias africanas de Portugal, Angola é a que mantém a relação mais densa, intrincada e, sejamos honestos, saborosa. Cabo Verde tem também um laço forte com Lisboa, mas a sua cultura crioula evoluiu para algo próprio, híbrido. Angola, por contraste, temperou a música, a língua e a cozinha no mesmo tacho de ferro fundido.


Vá até Namibe e encontrará o restaurante português como o mais procurado da cidade. Há quem se desloque desde do Cunene  ou Chipindo apenas para comer Carne de Porco à Alentejana—essa improvável união de carne de porco e amêijoas que, sob uma árvore de jacarandá, faz todo o sentido. As sardinhas assadas, ainda a crepitar, saem aos montes da grelha. Se existe um paraíso, é provável que cheire a alho e carvão.

Quando os angolanos viajam—para a África do Sul, para os Estados Unidos—ativam uma espécie de radar culinário. “Onde fica o restaurante português?” não é uma pergunta, é um instinto. E quando o encontram, não se limitam a comer—recordam. Já vi jovens em Boston, nascidos bem depois da independência, saborear Caldo Verde com os olhos fechados, como quem reza em silêncio. Não é exactamente nostalgia. É algo mais digestivo.


Até a sobremesa transporta história. Um Pastel de Nata não é apenas um doce de ovos. É diplomacia pós-colonial em massa folhada.


E não se trata só de comida. A cultura infiltra-se por todo o lado. Angolanos nascidos muito depois de 1975—que nunca puseram os pés em Lisboa—sabem de cor os trocadilhos picantes de Quim Barreiros e as desventuras tragicómicas do Zé Cabra. Há algum tempo, visitei o meu primo  em Catabola—antiga Nova Sintra—onde um empreendedor local estava a lucrar com autocolantes para carros que diziam apenas “Nova Sintra”. Um piscar de olhos entre passado e presente.


Na casa do meu Primo , a televisão estava permanentemente sintonizada num canal português. Nessa noite, fui brindado com aquilo a que ele chamou “uma refeição portuguesa para um convidado digno”—ou seja, vários tipos de carne, um arroz com ambição própria e uma garrafa de vinho do Douro que não pedia desculpa. Nenhum dos presentes tinha vivido em Portugal. Mas todos se comportavam como se o embaixador de Évora pudesse chegar a qualquer momento.


Há coisas que a História não arruma em pastas. Há relações que não se dissolvem com tratados ou proclamações. Persistem no paladar, na playlist, no comando da televisão. São ligações que não obedecem à lógica da ciência política, mas sim à da marinada. Tentar desfazê-las só cria mais nós.


E, no entanto, em Lisboa, sopra outro vento.

André Ventura, o patriarca do Chega e fornecedor oficial de indignações, insurgiu-se recentemente contra os nomes africanos que aparecem nos registos de nascimento em hospitais portugueses. Fodé, disse ele—nome comum na Gâmbia, Guiné, Libéria e Mali—seria uma ameaça à identidade nacional. Presume-se que Kona, tão ouvido na RDC como no Sudão do Sul, o deixasse igualmente escandalizado.


Mas o horror de Ventura perante nomes que não entende é, no fundo, um desconforto com aquilo que é inevitável. Fodé não é menos digno que Ventura. Kona não é mais estranho que Gonçalo. Os nomes, tal como as receitas, contam histórias. Não são perigosos—são humanos.


A ironia, claro, é que os portugueses sempre foram os primeiros a partir. A atravessar oceanos por especiarias. A ficar pelos pores-do-sol. O homem que consertou o meu Jeep não chegou com um programa partidário. Chegou com uma chave inglesa. Não perguntou de onde eu era, nem para onde ia. Limitou-se a ajudar.

E talvez seja isso que Ventura mais teme: não uma invasão, mas um reencontro. Um reencontro com histórias que nunca se separaram de verdade. Um reencontro onde a cultura ignora fronteiras, o riso atravessa postos de controlo e as sardinhas—bem grelhadas—lembram que há coisas que foram feitas para ser partilhadas.


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