Alguns angolanos, e não apenas os que vivem em Portugal, parecem viver em estado de permanente fascínio irritado com o líder do partido Chega, André Ventura: cada palavra que ele profere, cada aparição pública a que comparece, é esmiuçada até ao último pormenor, gerando reacções às vezes violentas, quase virulentas, em vários quadrantes. Tal fervor não nasce apenas do que Ventura diz, mas sobretudo do facto de ele se interpor, com voz estridente e pouco cerimoniosa, no laço psicológico profundo que certos sectores das elites angolanas mantêm com Portugal; para a maioria dos angolanos, que já não guardam memória directa da presença portuguesa nem da experiência colonial, Portugal é hoje um país distante, quase abstracto, mas para aqueles que viajam com uma naturalidade desarmante entre Luanda e Lisboa, que conhecem melhor as esplanadas de Cascais e os restaurantes da moda do que o interior esquecido de Angola, Ventura surge como um intruso plebeu, um pequeno arrivista que, em privado, tratam com um desdém quase classista.
André Ventura não é, de resto, o tipo de nome que alguém exibe com orgulho, como quem se gaba de o ter recebido para jantar em casa, num apartamento em Lisboa; é antes uma figura de quem essas elites preferem manter respeitosa distância, alguém a quem se evita dar demasiada proximidade. Porém, ele insiste, continua a falar dos assuntos de Angola com uma obstinação meticulosa e vai encontrando ecos, pontos de contacto e até causas comuns junto de sectores que, dentro do próprio país, se mostram igualmente profundamente hostis ao governo.
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A relação entre a elite angolana e Portugal é, aliás, de uma complexidade fascinante, porque há muito tempo se escreve numa gramática de amor e ódio; assim tem sido, pelo menos, desde o século XIX. Foi então que certos grupos de brancos e mestiços portugueses começaram a reclamar para si uma identidade angolana, apresentando-se como filhos da terra e, simultaneamente, mantendo um vínculo íntimo com a metrópole, através da língua e de um conjunto de aspirações sociais e culturais que os ligavam ao mundo lisboeta. A actual elite angolana herda muito dessa ambivalência: possui laços fortíssimos com Lisboa, acompanha com devoção a política portuguesa, discute com fervor o campeonato e as jornadas europeias, aprecia a gastronomia, consome a produção cultural e, em muitos casos, vive quase exclusivamente dentro da língua portuguesa, que se torna o seu único território verbal. Não é por acaso que, nesse universo, se olha com particular reverência para figuras como Paula Bobonne, guardiã de um certo código de etiqueta e boas maneiras, ou para Edith Estrela, na sua versão idealizada de professora de Língua e Literatura Portuguesa; nelas se projeta um modelo de portugalidade culta e normativa que muitos interiorizaram como padrão.
Ao mesmo tempo, os angolanos admiram profundamente os portugueses, mas não tanto os protagonistas da política miúda e do comentário televisivo, e sim os portugueses de Vasco da Gama, de Diogo Cão, do Infante D. Henrique: os navegadores que não temeram o desconhecido e que, no imaginário, ocupam hoje o lugar dos engenheiros espaciais que se preparam para ir a Marte ou à Lua. Aquilo que, ao seu tempo, parecia assustador e inalcançável, eles tornaram concreto, traçando rotas, dobrando cabos, abrindo linhas marítimas onde antes só havia mapas em branco. Trouxeram também ideias, trouxeram a religião católica, trouxeram um universo simbólico inteiro e, juntamente com isso, uma face sombria, brutal, em que Portugal se tornou peça central no tráfico de escravos que arrancou milhares de angolanos da sua terra. Muito cedo, porém, formou-se uma classe crioula, famílias africanas e mestiças que se foram incorporando na cultura portuguesa e que, pouco a pouco, passaram a servir também os desígnios do Estado colonial. A história torna-se, assim, um bordado apertado, de fios que se cruzam e se confundem: dominação e colaboração, violência e mimetismo, imposição e desejo de ascensão.
Convém ainda recordar que o ressentimento contra o regime ditatorial teve sempre um traço colectivo. O salazarismo oprimia os africanos, mas oprimia igualmente os próprios portugueses, muitos dos quais chegaram a Angola em circunstâncias duras, fugidos da pobreza ou de perseguições políticas, levando consigo uma memória amarga da metrópole. Dessa experiência partilhada nasceu uma forma peculiar de solidariedade, uma consciência de destino entrelaçado que nunca se dissolveu por completo.
Hoje, esse enredo reaparece na vida quotidiana das famílias angolanas de classe média e alta: vivem em Luanda, mas a televisão está muitas vezes sintonizada em canais portugueses, seguem com atenção os debates parlamentares em Lisboa, riem com os programas de entretenimento, sonham com escolas em que os filhos falarão um português impecavelmente europeu. As crianças crescem a imitar o sotaque lisboeta, a mesa replica pratos da culinária portuguesa e o ideal de respeitabilidade continua a ser medido por esse padrão.
É precisamente nesse cenário que irrompe o senhor Ventura, este sujeito com a aparência e o timbre de um taxista opinativo ou de um pequeno comerciante de bairro, dono de uma loja de vinhos e enchidos, que se permite falar de Angola com uma familiaridade rude, exibindo convicções que tocam nervos expostos. A sua retórica, o seu olhar sobre os africanos, o modo como instrumentaliza Angola no discurso político interno, tudo isso constitui uma provocação íntima para essas elites que, ao mesmo tempo que se reconhecem na tradição portuguesa e nela procuram um espelho, se vêem repentinamente confrontadas com uma imagem vinda de baixo, sem verniz, sem boas maneiras, que as irrita num plano profundo, quase existencial. É aí, nessa fricção entre a portugalidade idealizada e o Portugal real que Ventura encarna, que se percebe até que ponto a história partilhada continua a trabalhar em silêncio dentro do imaginário angolano.
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