O contencioso atual entre o partido Chega, em Portugal, e o governo angolano, bem como os sectores que gravitam em torno deste, tem qualquer coisa de singularmente salutar, porque obriga a redesenhar linhas que por vezes se desvanecem na memória e pode ajudar-nos, em Angola, a alcançar uma noção mais nítida da nossa identidade e de algumas das questões que a atravessam.
O mais recente salvo desta querela partiu de Bruno Nunes, deputado do Chega, que se pronunciou a propósito de um discurso em que o Presidente João Lourenço teria acusado os portugueses de terem desempenhado um papel negativo em Angola; fiel à linha revisionista do seu partido, que insiste em destacar os atributos positivos de Portugal e o elenco de dádivas que, segundo essa narrativa, teriam sido oferecidas a Angola, quase em discreta continuação da velha retórica da missão civilizadora, o deputado invoca entre esses legados a língua portuguesa e chega ao ponto de insinuar que o Chefe de Estado angolano proclama um alegado sentimento antiportuguês precisamente na língua que, afirma, lhe teria sido emprestada pelos próprios portugueses.
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O meu problema principal com a direita contemporânea, essa que hoje se estende de Washington a certos sectores em Londres e a várias correntes europeias, é a sua estreiteza de horizonte; trata-se, na sua maioria, de uma direita pouco lida, pouco dada ao esforço intelectual, muito diferente daquela direita de outros tempos que se definia pelo anticomunismo e se fazia acompanhar de pensadores, ensaístas, gente capaz de formular com alguma profundidade as suas convicções. O que agora domina, em muitos destes círculos, é o ecoar de sentimentos quase sempre pedestres, de sofisticação duvidosa, como se a esfera pública tivesse sido reduzida ao ambiente de um balcão de bar, em que o objetivo não é compreender melhor o mundo, mas ferir o adversário o mais possível, arrancar aplausos fáceis de uma plateia cansada e barulhenta.
Entre Angola e Portugal, a disputa assume ainda outra tonalidade, porque é, em grande medida, uma rixa entre primos que se conhecem demasiado bem, conhecem os botões sensíveis, sabem onde tocar para irritar o outro, e por isso o tema da língua se torna particularmente inflamável. Ao sugerir que o Presidente João Lourenço criticou Portugal em português, língua que, segundo ele, lhe teria sido generosamente emprestada, o deputado do Chega desferiu um golpe abaixo da cintura, não apenas pela grosseria do argumento, mas sobretudo por revelar que ignora as regras elementares do jogo quando se fala de língua, história e soberania; e ignora, acima de tudo, que a língua portuguesa, em Angola, deixou há muito de ser um empréstimo precário e resgatável para se tornar casa própria, espaço íntimo, instrumento com que pensamos, amamos, discordamos e, quando necessário, respondemos.
Eu sou angolano. Trago um nome português. Amo a língua portuguesa, amo o património português, e permaneço fascinado pelos romances de autores como Camilo Castelo Branco e José Saramago, pela maneira como, em cada frase, a língua se estica, se torce, se ilumina. Do outro lado do Atlântico, admiro a obra dos grandes escritores brasileiros, a começar por Machado de Assis, que fez da língua um laboratório de ironia, melancolia e lucidez, e prolongo esse fascínio nas canções que, ao longo de décadas, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Djavan ou Milton Nascimento foram oferecendo ao mundo, transformando a prosódia portuguesa em música que habita tanto o corpo como o pensamento. Entre os poetas, detêm-me a força de Cruz e Sousa, grande poeta negro brasileiro, e de José Craveirinha, o grande moçambicano que fez da língua um lugar de combate e de ternura. Nenhum destes criadores, nem tantos outros que poderia citar em África, precisa de jurar fidelidade política a Portugal para justificar o uso da língua; tal como muitos povos receberam o cristianismo da mão do colonizador e, mais tarde, usaram esse mesmo cristianismo para se libertarem da dominação, também a língua serve para instaurar outras soberanias, outras narrativas, outros centros.
A língua é, antes de tudo, uma ferramenta; e, como toda a ferramenta viva, sofre transformações quando entra em contacto com outras realidades, outros ritmos, outras memórias, ganha a tonalidade dos lugares onde é falada, carrega os sotaques, as dores e as esperanças de quem a usa. As nossas civilizações são teias de empréstimos e reinterpretações; a própria língua portuguesa está cheia de palavras vindas do árabe, do latim, de outras línguas românicas, e não pertence hoje, de modo exclusivo, a um território único, por muito que seja mais falada em certos espaços do que noutros. Não faz, por isso, grande sentido que um deputado afirme ter “emprestado” a língua portuguesa a Angola, como se houvesse um contrato de comodato cultural, com prazo de devolução e cláusulas de gratidão eterna; a expressão revela não apenas um equívoco histórico, mas também um défice de rigor intelectual.
A língua portuguesa deixou há muito de ser apenas a pátria de Fernando Pessoa; é hoje morada de muitos povos e de muitas biografias, espalhada por continentes, peles, memórias e sotaques diversos. Quem insiste em tratá-la como património exclusivo, como se se sentasse num trono herdado em linha reta dos antepassados, está a perder o seu tempo; embala-se na fantasia de que guarda um tesouro num cofre familiar, quando na verdade esse tesouro circula na rua, nas escolas, nas canções, nos mercados de Luanda, Maputo, Salvador da Baía. O que lhes restaria fazer, se fossem mais lúcidos, não seria reivindicar posse, mas sentar-se à mesa com todos os outros falantes e celebrar aquilo que ela é hoje: uma língua fascinante, rica, sofisticada, infinitamente mais vasta e mais preciosa do que as manifestações ruidosas de algum preconceito mal informado, proferido por um pigmeu intelectual algures em Portugal.
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