Meu filho, Tiyuká Jamba, acaba de erguer a cena de The Importance of Being Earnest com a limpidez de quem acende um candeeiro antigo. A respiração marca a cadência, a luz percorre-lhe o rosto, o riso corre pela sala como água fresca. Enquanto o vejo, regresso à biblioteca de Matero, nos arrabaldes de Lusaca, onde vivíamos como refugiados e eu tinha doze anos. Não conhecia teatros nem possuíamos televisão; conhecia o rumor das páginas e a promessa dos livros. Abri então Wilde e aprendi que a inteligência pode ser música. A janela estava turva de pó; a cidade fervia lá fora; eu lia e sorria em silêncio.
O meu primeiro palco foi a igreja. No Natal, inventávamos anjos com lençóis, memorizávamos falas curtas, aprendíamos a entrar e a sair sem ruído. Na Zâmbia, a rua tornou-se tablado. Chegavam trupes com cartazes e tambores, erguiam esquetes no meio da poeira, comunicavam saúde pública e política, ou simplesmente alegria. O teatro entrava onde a eletricidade falhava; falava alto; convencia; divertia. Havia, na cidade, o prestígio do Lusaka Theatre Club, com cortinas pesadas e candeeiros polidos, mas não nos pertencia. A nós bastava-nos a praça, o passeio, o pátio escolar, qualquer clareira onde coubesse um público e a respiração de uma história.
Fisioterapia ao domicílio com a doctora Odeth, liga agora e faça o seu agendamento, 923593879 ou 923328762
O Tiyuká nasceu artista. Quis logo entreter-nos. Começou pela magia: aprendia truques no YouTube e executava-os em casa, mas a gargalhada vinha cedo e, com ela, a revelação do mecanismo. Talvez fosse esse o encanto: desfazer o mistério para nos deixar entrar. Imitava vozes com ouvido de músico; copiava gestos da avó com minúcia; colhia tiques na rua; olhava o cinema como quem desmonta um relógio. Entrou numa escola onde era preciso provar aptidão para as artes; cantou, representou, dançou, sempre com seriedade. Hoje estuda na Douglas Anderson School of the Arts, especializando-se em teatro musical, disciplina exigente que não admite distração. Está em palco desde os dez anos, já vestiu papel de diácono, já atravessou personagens de apoio e protagonistas, já conheceu a humildade do contra-regra, a paciência do ensaio, a ciência do coro. Fala do Caribe com naturalidade porque um dia foi caribenho em cena; discute os anos sessenta e setenta como quem os viveu porque neles habitou em personagem. O teatro deu-lhe mundo e deu-lhe tato.
Se me pedem conselho para crianças e jovens, recomendo o teatro com convicção. Cria empatia. Obriga a viver, ainda que por instantes, noutras casas e noutras ruas, sob outros códigos. Pede leitura, pesquisa, escuta. Num tempo que tantas vezes opera por preconceito, por estereótipo e caricatura, devolve espessura às pessoas, educa o gesto e alarga o olhar.
A comédia de Wilde que hoje o acolhe é uma sátira límpida às máscaras da sociedade vitoriana. Trama identidade e fingimento, brinca com a gravidade do casamento e a tirania da reputação, expõe a fragilidade da moral quando se confunde com etiqueta. Jack Worthing e Algernon Moncrieff inventam vidas paralelas, arranjam o nome “Ernest” como chave que abre portas, fogem a deveres, perseguem o amor, tropeçam em equívocos saborosos. Gwendolen declara que só pode amar quem se chama Ernest; Algernon apresenta-se como tal para conquistar Cecily; as mentiras cruzam-se e quase se enredam sem remédio. No fim, a farsa fecha com elegância: a verdade estala como semente madura, os nomes recompõem-se, e descobre-se que Jack se chama, de facto, Ernest e é irmão de Algernon, o que permite os casamentos e pacifica o riso. Por baixo da leveza, permanece a ideia teimosa de que a seriedade proclamada pode ser teatro pobre, e de que a autenticidade talvez exija ironia, jogo limpo com o absurdo e uma alegria que não finge.
Vejo o Tiyuká dizer o texto como quem abre uma janela. Regressam Matero e a sua janela poeirenta, regressa a rua que foi palco, regressa a igreja que serviu de bastidor. Aplausos levantam-se como maré. Compreendo então que a arte não se mede pelas portas que se atravessam, mas pela luz que cada um leva consigo ao sair. Guardo no bolso o rapaz que fui e, nos olhos, a claridade do filho no seu lugar de palco.
Siga o canal do Lil Pasta News clicando no link https://whatsapp.com/channel/0029Vb4GvM05Ui2fpGtmhm0a
Lil Pasta News, nós não informamos, nós somos a informação



0 Comentários