Tanzânia 2025: entre o legado de Nyerere e a revolta da Geração Z- Hitler Samussuku

 


A Tanzânia é uma dessas nações que parecem carregar, em cada grão de terra e em cada gesto do seu povo, o peso e a esperança de toda a história africana contemporânea. No coração da África Oriental, entre o Oceano Índico e os grandes lagos, o país vive uma contradição que reflete as dores do continente: um passado de utopia socialista e um presente dominado pela lógica fria do neoliberalismo global. O caso tanzaniano não é apenas um capítulo isolado da política africana — é o espelho de um sistema que transforma a esperança em estatística e a soberania em dependência, ecoando as mesmas feridas que marcam grande parte do Sul Global.

Nos anos 1960, sob a liderança visionária de Julius Nyerere, a Tanzânia foi um farol de dignidade e emancipação. Inspirado pelo pan-africanismo e pelas tradições comunitárias do continente, Nyerere acreditava que a liberdade política só teria sentido se viesse acompanhada da justiça social. A Declaração de Arusha (1967) foi o manifesto dessa utopia: propunha um socialismo africano fundado na autossuficiência, na igualdade e no trabalho cooperativo. O conceito de ujamaa — “família estendida” — simbolizava a tentativa de construir uma economia solidária, enraizada na cultura local. Durante a década de 1970, a Tanzânia acolheu movimentos de libertação de Angola, Moçambique, Zimbábue e África do Sul, tornando-se um espaço de resistência e esperança para todo o continente.


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Mas a maré da história foi impiedosa. As crises globais dos anos 1970 — o choque do petróleo, a queda dos preços das matérias-primas, a dívida externa — minaram as bases do projeto socialista. Nos anos 1980, sob pressão do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial, a Tanzânia cedeu às políticas de ajuste estrutural. Privatizações, cortes nos serviços públicos e desregulamentação abriram caminho para o neoliberalismo. O Estado que antes se pretendia guardião da igualdade converteu-se em gestor da pobreza. O sonho do ujamaa foi substituído pelo dogma da “eficiência” e pelo mantra da “competitividade”.

Hoje, a Tanzânia é apresentada pelos organismos internacionais como um exemplo de “estabilidade macroeconômica”. O país cresce cerca de 5% ao ano, com inflação controlada entre 3% e 5% e PIB em torno de 78 mil milhões de dólares. No entanto, esses números escondem uma verdade amarga: a desigualdade estrutural. Três em cada quatro tanzanianos ainda vivem da agricultura de subsistência, com produtividade baixa e pouco acesso a crédito ou tecnologia. O crescimento concentra-se no setor extrativo, dominado por grandes multinacionais estrangeiras.

O ouro é o motor da economia, explorado por gigantes como a Barrick Gold Corporation (em joint venture com o Estado, através da Twiga Minerals) e pela sul-africana AngloGold Ashanti, que opera a mina de Geita, uma das maiores da África Oriental. A presença de empresas como Shanta Gold, Volt Resources, Titan Lithium e Kabanga Nickelrevela o interesse crescente em minerais estratégicos como lítio, níquel e grafite, essenciais para a indústria de baterias e veículos elétricos. No setor energético, a Shell, a Equinor e a ExxonMobil negociam projetos de exportação de gás natural liquefeito (LNG) que prometem transformar a matriz energética do país. Mas esse capital estrangeiro, embora traga investimento e tecnologia, raramente se traduz em desenvolvimento inclusivo. As riquezas do subsolo partem em navios, enquanto o povo continua preso à pobreza rural.

O autoritarismo tem sido o outro lado dessa moeda. Desde a independência, o país é governado pelo Chama Cha Mapinduzi (CCM), partido hegemônico que se apresenta como herdeiro da revolução, mas se comporta como guardião do capital. A transição recente para o governo da presidente Samia Suluhu Hassan, após a morte de John Magufuli, gerou expectativas de abertura democrática. No entanto, as eleições de 2025 desmentiram as promessas: prisões arbitrárias, censura, repressão a protestos e denúncias de fraudes mostraram que o regime tanzaniano continua a usar o controle político como escudo do poder econômico. Organizações de direitos humanos apontam que, entre 100 e 700 pessoas, podem ter sido mortas durante manifestações.

Essas manifestações foram conduzidas, em grande parte, pela Geração Z tanzaniana, jovens nascidos após o auge do socialismo africano e que cresceram sob o peso das promessas não cumpridas do neoliberalismo. É uma geração conectada, urbana e informada, que vê no smartphone uma ferramenta de mobilização e na internet um espaço de liberdade — ainda que vigiado. Quando as denúncias de fraude e repressão eleitoral tomaram as ruas de Dar es Salaam, Dodoma e Arusha, foram esses jovens que ergueram cartazes, filmaram abusos e exigiram um novo horizonte político. Eles não se reconhecem no velho discurso do CCM, nem se identificam com uma oposição liberal que parece repetir os mesmos vícios do sistema.

Para a Geração Z tanzaniana, o problema do país não é apenas a falta de democracia, mas a ausência de futuro. A juventude vê um mercado de trabalho estagnado, uma educação que não dialoga com a era digital e um Estado incapaz de oferecer oportunidades reais. Muitos buscam no empreendedorismo tecnológico ou na migração alternativas à estagnação interna. Outros se radicalizam politicamente, transformando a indignação em resistência cívica. Os protestos pós-eleitorais, que resultaram na prisão de lideranças opositoras e de ativistas, expressam mais do que uma rejeição ao governo — simbolizam o grito de uma geração que se recusa a herdar a submissão e a desigualdade como destino.

Essa juventude luta, em essência, por reconhecimento, dignidade e voz. Suas reivindicações não se limitam a slogans políticos, mas refletem as necessidades do seu tempo: emprego, liberdade digital, igualdade de gênero, participação cívica e sustentabilidade ambiental. É uma geração que não aceita as fronteiras ideológicas herdadas do passado — quer uma África moderna, criativa e autônoma, capaz de dialogar com o mundo sem submeter-se a ele. A repressão estatal a esses jovens mostra o medo das elites diante de uma consciência nova que começa a se formar: a consciência de que a liberdade política sem justiça social é apenas um simulacro.

A combinação entre neoliberalismo e autoritarismo não é casual — é estrutural. No capitalismo periférico, o Estado atua como mediador entre o capital global e uma sociedade empobrecida, reprimindo as tensões sociais que ameaçam a estabilidade exigida pelos investidores. O resultado é um sistema em que a democracia é tolerada apenas enquanto não desafia os interesses do mercado. O povo vota, mas não escolhe; protesta, mas é silenciado.

Os recursos naturais da Tanzânia — ouro, diamantes, gás natural, tanzanite, rubis, urânio — poderiam financiar uma transformação social profunda. O país também é rico em potencial agrícola e turístico: produz café, chá, algodão, caju e sisal, e abriga ícones como o Monte Kilimanjaro, o Serengeti e Zanzibar. Mas o desafio não está em ter riquezas — está em quem se beneficia delas. Enquanto as multinacionais exportam lucros e o FMI dita as regras fiscais, o Estado limita-se a gerir a sobrevivência.

O destino da Tanzânia, e talvez da África, dependerá da capacidade de seus povos — e sobretudo de sua juventude — de resgatar o espírito do ujamaa, essa ideia radical e bela de que o desenvolvimento só tem sentido se for coletivo. Julius Nyerere sonhou com uma África livre, solidária e autossuficiente. Hoje, cabe à Geração Z reimaginar esse sonho à luz dos novos tempos, combinando tecnologia, consciência social e vontade de mudança.

A Tanzânia cresce, mas não se desenvolve; exporta riqueza, mas importa dependência; mantém eleições, mas silencia sua juventude. O retrato é duro, mas necessário — e deve servir de espelho também para o Brasil, outro país rico em recursos, mas ainda prisioneiro da desigualdade. Porque, no fim, a luta pela soberania africana é também a luta de todos os povos do Sul global que buscam romper o ciclo da exploração e afirmar um futuro de justiça, solidariedade e verdadeira liberdade.


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