No congresso da UNITA, o filho do fundador foi derrotado de forma esmagadora: cerca de 10% dos votos contra mais de 90% para o presidente em exercício. Em África, isto é raríssimo. A norma é o contrário: o filho herda o movimento, o partido torna-se propriedade familiar, a organização transforma-se numa capela de devoções hereditárias. Aqui, porém, os delegados distinguiram claramente o mérito do pai das limitações do filho e recusaram a sucessão por sangue. Como foi possível que um movimento fundado por uma das figuras mais autoritárias da política africana contemporânea gerasse uma cultura institucional capaz de rejeitar tão contundentemente o herdeiro? A resposta, paradoxal, está na própria herança de Jonas Savimbi: ele próprio ensinou o partido a não confundir laços de sangue com razão de Estado.
Há uma vasta literatura dedicada às falhas de Savimbi, muitas delas justificadas. A sua imagem de vilão tornou-se tão dominante que obscurece qualidades decisivas para a sobrevivência da UNITA. Por trás do traço napoleónico e autocentrado, existia um lado técnico, quase ascético, na forma como entendia a liderança política e militar. No contexto angolano, era um profissional raro: não confundia comando com nepotismo nem afecto com promoção.
No exército da UNITA, filhos e sobrinhos de Savimbi seguiram o mesmo percurso de provas que todos os outros. Os campos de treino eram laboratórios de carácter onde coragem, disciplina e capacidade de decisão em condições extremas valiam mais do que o apelido. Vários sobrinhos morreram na frente. Savimbi ia ao terreno, partilhava marchas, frio e rações escassas. Não há evidência consistente de que promovesse parentes só por parentesco quando havia quadros mais aptos.
O caso do general Ben Ben Arlindo Pena é exemplar. A sua ascensão não se deveu ao parentesco, mas a um historial de combates reais. Desde os primeiros anos da guerra, participou em operações em inferioridade absoluta contra forças governamentais apoiadas por estrangeiros. Um irmão, Lote, morreu em combate; outro, Salupeto Pena, foi ferido, tratou-se e regressou. Ben Ben comandou depois ofensivas de grande desgaste, incluindo Cuito Cuanavale e outras frentes decisivas. A progressão correspondeu sempre a risco continuado, missões cumpridas e capacidade de manter a moral das tropas. Os parentes passavam pelo mesmo crivo que os demais e só subiam se o merecessem de facto.
Com o tempo, esta ética de exigência impregnou toda a organização, militar e política. Aqui reside uma das grandes contradições de Savimbi: podia romper com adversários internos até ao extremo, mas reconhecia competência mesmo quando esta o contrariava. Foi o que aconteceu com os generais Sachipengo Nunda e Eugénio Manuvakola. Ambos desafiaram o líder publicamente (Nunda sobre estratégia militar, Manuvakola sobre as negociações de paz nos anos 90) num contexto de crescente culto da personalidade. Foram afastados e sofreram rupturas dolorosas. Ainda assim, quando recebiam missões, revelavam eficácia rara na improvisação e na resistência local. Savimbi eliminava quem considerava traidores, mas mantinha um respeito tácito por quem fazia as coisas acontecerem, mesmo que isso o magoasse pessoalmente.
Não se pode dizer que Savimbi tenha planeado conscientemente um sistema meritocrático. A meritocracia nasceu por necessidade prática, quase darwiniana. Numa guerra assimétrica, com recursos mínimos contra adversários superiores, a sobrevivência dependia de competência, não de lealdade cega ou laços familiares. Um comandante medíocre podia custar centenas de vidas e uma frente inteira. Savimbi era autoritário e implacável, mas não podia promover inúteis só porque eram parentes ou bajuladores. A guerra não perdoava.
Deste processo nasceu um culto discreto mas tenaz da excelência que hoje faz parte do ADN da UNITA: vale quem aguenta as tarefas mais duras, quem sobrevive às missões impossíveis, quem prova no terreno que suporta com o povo o peso das circunstâncias. Esse critério silencioso sobreviveu às guerras, aos exílios e às reconciliações, transplantando-se para a estrutura actual do partido.
É neste contexto que surge Adalberto Costa Júnior, o produto mais acabado dessa cultura. Conhece a máquina partidária por dentro (das engrenagens visíveis às invisíveis) ligação que não se aprende em seminários, mas em camionetas, assembleias distritais e visitas incessantes às bases. Após a morte de Savimbi, Isaías Samakuva manteve a coesão e honrou essa cultura de exigência, abrindo caminho à ascensão de ACJ. Em 2022, este percorreu Angola de lés a lés, reconstruindo presença territorial que a UNITA não tinha desde o pós-guerra. Esse trabalho é físico, repetitivo, desgastante: estrada, conversas olhos nos olhos, paciência para ouvir queixas e explicar decisões.
É esta a forma contemporânea do velho culto da competência que Savimbi, sem o saber nem o querer, deixou como herança: quem quiser liderar a UNITA tem de provar que habita o país real, não apenas o das declarações. Tem de descer ao terreno, conquistar delegados, demonstrar com actos repetidos que faz avançar a causa. O filho do fundador, apesar do apelido, não o provou. Os delegados, formados nessa cultura e cientes de que a UNITA não é património familiar, rejeitaram-no esmagadoramente.
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