Em Defesa do C4 Pedro- Sousa Jamba



C4 Pedro voltou ao centro da conversa pública com aquela mistura de clarão e lâmina que os artistas verdadeiros, quando acertam no nervo, costumam provocar. Criticou certas formas de “ajuda” prestadas por brasileiros em Angola, ajuda que chega com bens e sorrisos, mas também com uma mise-en-scène que, muitas vezes, raspa a dignidade de quem recebe. O pobre deixa de ser pessoa e passa a ser cenário; o benfeitor deixa de ser cidadão solidário e passa a ser protagonista. A compaixão, quando encontra uma câmara, ganha vícios rápidos.


A resposta não tardou. Chamaram-lhe hipócrita. Chamaram hipócritas também os que, como eu, lhe dão razão. E a pergunta, dita com ar de tribunal, apareceu logo em cima da mesa, como se fosse argumento final: “Então o que é que ele faz pelo povo?” Há interrogações que parecem razoáveis, mas trazem escondida uma armadilha: reduzem toda a vida social a sacos distribuídos, como se um país fosse apenas estômago, e como se o respeito fosse um luxo para dias de fartura.

Eu sei que isto é difícil de apreender. A fome empurra, a urgência ensurdece, e há momentos em que a mão estendida parece valer mais do que qualquer conversa sobre dignidade. Soma-se a isto um peso ainda mais fundo: a crença, feita de desespero e de hábito, de que só mudamos se vier alguém de fora, com a solução pronta, a moral ao peito e o africano bem posicionado na fotografia. Essa crença é um veneno lento. Mata-nos a iniciativa. E, pior, treina-nos a agradecer a humilhação como se fosse salvação.


C4 Pedro fala de dignidade porque sabe o que ela sustenta. Não é um enfeite. É chão. É identidade. É coluna vertebral. Nós, africanos, atravessámos turbulências que não cabem nos relatórios: violência material, sim, mas também violência psicológica, uma pedagogia de inferiorização repetida, uma longa aprendizagem do “sê grato e cala-te”. A dignidade, depois disto, torna-se um oceano difícil de nomear. Há quem a confunda com orgulho vazio. Há quem a trate como moralismo de gente confortável. E há quem prefira nem tocá-la, porque dói tocá-la.


Surge então o argumento da suspeita: dizem que C4 Pedro está ligado ao regime, ao MPLA. Pode ser. Mas mesmo que seja, isso não o torna menos angolano, nem menos africano, nem menos legítimo quando fala de respeito. Confundir filiação ou proximidade com a verdade do que está a ser dito é uma maneira preguiçosa de fugir ao essencial. A validade de um alerta não se mede pela pureza do mensageiro, mede-se pelo que o alerta revela. E a pergunta dele é simples, dura e justa: quando ajudamos, estamos a levantar pessoas ou estamos a usar pessoas?


Aqui convém pôr as coisas no lugar, sem sentimentalismos nem maldade. A doação ocasional, feita no terreno, de bens que chegam a quem precisa, é bem-vinda e faz diferença real na vida de quem recebe. Ninguém sensato despreza isso. O que se critica não é a ajuda em si. É o espetáculo. É o modo como, tantas vezes, se oferece o pão com a condição de uma fotografia, e se entrega o saco com a exigência de uma cena. A miséria, nesse teatro, serve para ampliar a virtude de quem filma. E isso, por mais lágrimas que traga, é uma forma de violência.


Comparar esse tipo de doação pontual com o tipo de “filantropia” que um artista pode produzir é, por isso, injusto e sem lógica. Porque há trabalhos que não se fazem com sacos, fazem-se com sentido. Um músico que, com consistência e talento, constrói uma carreira, cria também uma economia e uma linguagem. Cria trabalho de forma direta, quando sobe ao palco e põe uma máquina inteira a funcionar: músicos, coristas, técnicos de som e luz, roadies, seguranças, motoristas, produtores, designers, costureiras, maquilhadores, operadores de câmara, bilheteiras, vendedores à volta do recinto. Cada concerto é uma pequena cidade em movimento. Cria trabalho de forma indireta, porque uma carreira séria puxa outros para a corrente: estúdios que gravam, videoclipes que empregam equipas, promotores que arriscam, rádios que programam, jornalistas e críticos que escrevem e discutem. E nessa discussão, nesse vai e vem de interpretações, acabamos por fazer uma coisa rara: uma introspeção coletiva. Debatemos as canções e, sem dar por isso, debatemos o país. Um país não se faz só com estradas e betão. Faz-se também com símbolos, com padrões, com ambição, com a certeza íntima de que temos mundo dentro de nós.


E há nele outra dimensão que pesa e que poucos valorizam: profissionalismo. Os espetáculos não são improvisos para exibicionismo. São trabalho. São disciplina. São entrega. Eu respeito isso. E respeito, igualmente, a decência pessoal, que se vê nos gestos pequenos, onde não há palco e não há prémio.

Lembro-me de um episódio num vídeo em Saurimo. C4 Pedro era recebido por um grupo de dança tradicional, jovens artistas da terra, a fazer o ritual de boas-vindas que é também afirmação cultural. A pressa, nesses momentos, manda quase sempre: cumprimenta-se, sorri-se, e corre-se para o carro. Mas ali vi outra coisa. Vi-o parar. Vi-o olhar com atenção, como quem reconhece parentesco. E vi-o pedir a alguém da equipa que entregasse o dinheiro de agradecimento, não como gorjeta a uma pessoa, mas como sinal de apreço à cultura que estava ali de pé, viva, em corpo e ritmo. No olhar dele havia ligação. Havia chão.


E há, por fim, um contraste que diz muito: ele não transforma cada gesto num episódio lacrimoso. Não corre para as redes a chorar para a lente, a enumerar feitos como quem pede recibo moral. Há ajudas que se fazem em silêncio, por pudor, por educação, por respeito. Esse recato, em si, já é uma resposta ao tempo em que vivemos, um tempo viciado em autorretrato e em heroísmo instantâneo.


No fundo, a discussão não é sobre canonizar um artista, nem sobre absolver ninguém de nada. É sobre entender que a dignidade não é conversa de salão. É matéria de sobrevivência. Quem a perde, perde também a capacidade de se levantar sem pedir licença. E é isso, antes de qualquer outra coisa, que C4 Pedro defendeu.

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