Ficção e Realidade em Angola- Sousa Jamba



Outrora, as sociedades recorriam à ficção para enfrentar aquilo com que não sabiam lidar nas páginas dos jornais, nas dissertações académicas, nos discursos políticos ou nas memórias históricas; a ficção, valendo-se da faculdade de torcer ligeiramente os factos, esse pudico eufemismo a que chamamos liberdade artística, permitia dizer uma verdade mais funda. Quem hoje pensar em fazer carreira a escrever ficção em Angola terá de ponderar duas vezes, porque a realidade angolana é, ela própria, mais excitante, mais desregrada, mais escandalosa do que qualquer romance. Basta entrar na internet: se um romancista tivesse inventado uma mulher que, presa num engarrafamento de Luanda, solta gritos de júbilo porque accionou dentro de si um brinquedo erótico, o autor seria logo acusado de roçar o inverosímil; no entanto, algures nesse vasto território online, há uma jovem cujo trunfo singular consiste precisamente em ter contado isso à nação inteira.


À noite, em Angola, já não se muda de canal para procurar a ficção; corre-se para os blogues, para os canais de entrevistas, para esses programas onde o atractivo principal é a desmesura com que se expõem vidas privadas. Há desabafos, queixas, confissões e lágrimas em directo. Se um romancista tivesse imaginado um homem quase em pranto, a reivindicar orgulhosamente ter tido um caso com uma figura feminina de grande relevo na política nacional, enquanto ela, do outro lado, nega o romance, dir-se-ia que exagerara. A cena tornar-se-ia ainda mais inverosímil se esse personagem masculino, ferido no orgulho, se queixasse não de ser caluniado, mas de não lhe reconhecerem a glória de ter passado pela cama de uma mulher de meia-idade; um homem reduzido a um modelo de masculinidade esvaziada, cuja única credencial pública é a alegação de ter sido amante dessa senhora. Qualquer editor sério consideraria tal figura literária um excesso, uma impossibilidade moral; contudo, é exactamente isso que acontece, em directo, em Angola.


E, como se não bastasse, a realidade ainda encontra forma de se tornar deliciosamente mais desatinada. De súbito, o país acorda para a notícia de que um humorista célebre terá sido detido por alegadas relações impróprias com uma filha adoptiva já adulta; as imagens espalham-se, conta-se que a própria esposa o terá denunciado, e a opinião pública entra em ebulição. Multiplicam-se moralistas de ocasião, textos indignados, sermões em forma de comentário; as redes sociais transformam-se num pequeno reactor nuclear de fúria e voyeurismo. Em seguida, entra em cena a polícia: vemos o porta-voz, musculado, fotogénico, saído quase de um casting de Hollywood, a confirmar a detenção e a desfilar, com serenidade teatral, os passos processuais que eventualmente levariam o caso a tribunal. Consumimos tudo, acreditamos em tudo, organizamos a nossa curiosidade em episódios, à espera do próximo capítulo. Até que, no dia seguinte, o comediante e a esposa reaparecem em vídeo, serenos, a explicar que sim, houve uma discussão, sim, houve uma queixa, sim, houve detenção, mas que o enredo que circula é uma completa deturpação. Enquanto isso, nos bastidores digitais, alguns riem discretamente e murmuram que tudo não passou de marketing, de estratégia calculada para chamar a atenção; outros garantem que foi uma manobra para distrair o público de assuntos mais sérios. O certo é que o povo esteve, durante dias, entretido e cativo.


Logo a seguir, como se o país tivesse necessidade de um segundo número no mesmo circo, surge a história de uma mulher pobre, abandonada pelo marido e deixada num daqueles musseques brutais de Luanda. Um benfeitor radicado no Canadá comove-se, compra-lhe uma casa, começa a apoiar a família; em pouco tempo, a vida desta mulher transforma-se numa novela colectiva que toda a gente acompanha, comenta, disseca. O episódio seguinte parece escrito por um guionista em busca de audiências: o marido, que fugira esmagado pela pobreza, reaparece quando a situação da esposa melhora, aparentemente indiferente a quem comprou a casa ou a quem sustenta agora o lar; instala-se como se nada fosse. A reacção pública é feroz: chovem insultos, diagnósticos sumários sobre a sua “fraqueza de carácter”, a sua “falta de masculinidade”, a sua suposta vocação de proxeneta; ele é promovido a símbolo de tudo o que há de errado no homem angolano. Até que, de repente, alguém sussurra que esse regresso nunca aconteceu, que tudo não passou de encenação, de peça publicitária montada para manter o enredo vivo. E o público, em vez de se sentir enganado, delicia-se com a reviravolta; aprecia o golpe de teatro, como se estivesse diante de uma série bem escrita.


Para completar o quadro, há ainda uma figura curiosa que opera à distância, algures no Norte europeu, talvez num qualquer recanto escandinavo, e que fez carreira como cronista das desgraças alheias. O seu nicho é claro: um pequeno círculo de angolanos conhecidos, que ela parece conhecer por dentro, e sobre os quais derrama detalhes, insinuações, humilhações, tudo embalado num registo aparentemente espontâneo. Tem uma boca que se torce de forma expressiva, um jeito quase teatral de cuspir sílabas, e há nela uma espécie de talento perverso, uma elegância da maldade. A crueldade, quando vem embrulhada em humor e fluência verbal, torna-se estranhamente sedutora; há qualquer coisa de fascinante em observar uma pessoa que, sem pestanejar, está disposta a esmagar reputações, destruir vidas, reduzir biografias inteiras a um parágrafo venenoso. Personagens assim, noutro contexto, seriam matéria de romance psicológico; em Angola, têm canal próprio, horários de emissão e audiências fiéis.


Com isto tudo, a ficção vê-se encostada à parede. Aquilo que, noutros tempos, seria o território natural do romance, do conto, da grande narrativa inventada, passou a ser ocupado por esta espécie de verdade virtual, parte boato, parte confissão, parte espectáculo. O romance, se quiser sobreviver, talvez tenha de se resignar a ser literal, minucioso, quase documental; talvez tenha de aceitar ser um pouco mais aborrecido, menos vistoso, menos histriónico, para poder competir com a vertigem das redes. Porque, em Angola, a realidade não se limita a inspirar a literatura; tomou-lhe o lugar e obriga o escritor a contentar-se, humildemente, em tomar notas.

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