A morte de Jardo Muekalia não chega como uma simples notícia; chega como um abalo íntimo, um silêncio denso que se instala no pensamento nacional e custa a aceitar. Não é apenas a ausência física de um homem que nos fere, mas a consciência dolorosa de que Angola perdeu uma das suas vozes mais raras, lúcidas e honestas. Há mortes que não se anunciam com estrondo, mas com um vazio profundo — e esta é uma delas.
Conheci Jardo Muekalia primeiro como leitor atento, através de Angola: A Segunda Revolução. Desde as primeiras páginas, percebe-se que não se trata de um livro comum, mas de um gesto de entrega à memória e à verdade. Com uma escrita serena, clara e profundamente humana, Muekalia conduz-nos pelos caminhos tortuosos da independência, da guerra, da diplomacia e das contradições que moldaram Angola. Não há ali gritos, nem slogans fáceis; há, sim, uma dor contida, uma lucidez rara e um profundo respeito pela complexidade da história. Lê-se com a sensação de que o autor caminha ao nosso lado, partilhando dúvidas, explicando contextos, reconhecendo ambiguidades, sem nunca trair a inteligência do leitor. É um livro que ensina, mas sobretudo que inquieta — e é por isso que permanece.
Essa mesma densidade intelectual e compromisso com a memória revelam-se também na obra da sua esposa, confirmando que naquele núcleo familiar a escrita não era apenas um exercício estético, mas um acto ético, um pacto com a verdade e com as gerações futuras.
Quando soube da sua morte, senti a necessidade de parar. As perdas irreparáveis exigem silêncio antes das palavras. Porque Angola não perdeu apenas um antigo dirigente político ou um ex-diplomata; perdeu um homem de excepção, um quadro raro, um intelectual comprometido com o seu tempo e com o seu país. A sua trajectória atravessou alguns dos momentos mais duros e dramáticos do século XX angolano, quando o destino nacional se confundia com os grandes confrontos ideológicos do mundo.
Como representante da UNITA no Reino Unido e nos Estados Unidos durante a Guerra Fria, e mais tarde como chefe da diplomacia do movimento em Washington entre 1989 e 1999, Jardo Muekalia foi mais do que um actor político: foi um mediador de narrativas, um intérprete da dor angolana perante o mundo. Num tempo em que Angola era tratada como peça de xadrez geopolítico, ele soube humanizar o conflito, explicar as suas raízes, expor as suas feridas e recusar leituras simplistas.
Mesmo depois, como professor de Relações Internacionais, nunca abdicou da reflexão crítica. Teve a coragem rara de pensar para além da fidelidade automática, reconhecendo contradições, paradoxos e limites — não como traição, mas como maturidade intelectual e ética. Essa coragem é, talvez, uma das maiores perdas que hoje choramos.
A morte de Jardo Muekalia deixa um vazio difícil de preencher. Num país onde a memória histórica é tantas vezes disputada, silenciada ou instrumentalizada, a sua voz representava a possibilidade de um olhar profundamente angolano, informado e honesto sobre o passado e o presente. Perdemos um homem que soube conciliar militância e pensamento, compromisso e dúvida, diplomacia e humanidade.
À família, aos amigos, aos antigos companheiros de percurso e aos leitores que, como eu, o conheceram primeiro pelas páginas dos seus livros, resta a dor da ausência e o consolo da permanência da sua obra. Porque enquanto Angola: A Segunda Revolução continuar a ser lido, questionado e debatido, Jardo Muekalia não estará verdadeiramente ausente. Ele continuará connosco, como consciência crítica, como memória viva, como uma voz serena que nos ajuda a atravessar — com mais lucidez e humanidade — os muitos rios ainda por cruzar na história de Angola.
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