Conheci o Mano Jardo Muekalia em 1985, no sudeste de Angola, numa dessas noites em que a guerra, sem renunciar à sua ferocidade, aceita por instantes a disciplina de um cerimonial: o gerador a ofegar como um animal preso, o hálito espesso do gasóleo, lanternas a rasgarem a escuridão em traços nervosos, e homens a cruzarem-se com a pressa contida de quem sabe que, ali, cada minuto tem preço e cada descuido tem enterro.
Dr Jonas Malheiro Savimbi convocara uma reunião que parecia, à primeira vista, um paradoxo cuidadosamente montado: quadros superiores da UNITA e, ao lado deles, dignitários militares estrangeiros, impecáveis, com o porte de quem conhece a guerra mais por mapas e relatórios do que por lama nos joelhos. Eu estava suficientemente perto para ver Dr Savimbi reparar no Mano Jardo e chamá-lo com um “jovem, venha cá!”, como quem convoca não apenas uma pessoa, mas uma função. Em seguida, sem hesitação, passou ao inglês; e aquele inglês, na boca dele, não foi ornamento nem gentileza, foi instrumento, mais uma peça do seu arsenal, tão eficaz quanto qualquer argumento ou ameaça.
Os dois começaram a conversar, alternando naturalmente entre o português e o inglês, como quem muda de lâmina sem mudar de mão. Falaram longamente, sem ruído nem exibicionismo, num vaivém de frases que ora apertava a ideia, ora abria espaço para a resposta. O que me ficou, porém, não foi só a correcção, nem sequer o brilho. Foi o prazer, esse prazer sério de quem pensa com as palavras.
O Mano Jardo parecia habitar a frase por dentro; escolhia o termo não para se exibir, mas para apertar o pensamento até ele ganhar forma. Ligava uma ideia à seguinte com uma alegria disciplinada, quase física, como se a língua lhe desse, ao mesmo tempo, velocidade e método.
Parte desse inglês vinha do acaso bem organizado das missões. Dondi, os missionários americanos, essa paisagem humana onde a língua chega cedo, não como matéria escolar, mas como ar respirado, como rotina. Mas nele não era apenas exposição. Era domínio. A inteligência dele ganhava outra rotação naquele idioma; o inglês, nas mãos do Mano Jardo, não era adorno de salão, era lâmina de trabalho, ferramenta afiada, usada com parcimónia e eficácia.
E havia nele o olhar de quem sabe separar o essencial do ruído. Via o tabuleiro inteiro. Percebia que a guerra não se joga apenas com munições e emboscadas; joga-se com informação, acessos, contactos, portas que se abrem antes de outras se fecharem. Tornava-se quase inevitável que se aproximasse do trabalho de informações externas, esse ofício que procura alianças, constrói pontes e trata a diplomacia como extensão do esforço militar e político. Teve formação com instrutores franceses, marroquinos e britânicos; distinguia-se porque aprendia depressa e, no meio do método alheio, preservava o núcleo do próprio juízo.
Quando cheguei a Jamba, o Mano Jardo fora, por um breve período, o responsável máximo pelos serviços de informações externas. Lembro-me de conversas discretas entre intelectuais do movimento, ditas a meia-voz, com uma satisfação que não era teatral: estavam aliviados por existir ali um homem de livros, alguém capaz de ler para lá do rumor e da suspeita, alguém que não confundia barulho com realidade.
Mas lembro-me também do outro lado, inevitável e áspero. Havia operacionais que desconfiavam dessa sofisticação, que viam nos livros uma fraqueza, e que preferiam a brutalidade simples à complexidade estratégica. O Mano Jardo navegava essa tensão sem alarido; pagava, porém, o seu preço. Sabia que certos homens nunca o compreenderiam por inteiro e que, naquele contexto, a inteligência podia ser, ao mesmo tempo, escudo e alvo.
Convém dizê-lo com clareza: apesar da elegância com que mais tarde se moveria em capitais europeias, o Mano Jardo dos anos oitenta era, na raiz, um soldado. Vivia de estratégia, leitura militar e logística. Não era pose. Era liga. E é precisamente aí que a figura se torna mais interessante, porque o soldado vinha envolto numa humanidade rara.
Era sofisticado, sim, mas sem aquela ansiedade do brilho, sem a fome de ser visto. Era grande conversador, mas o segredo não estava no que dizia; estava no modo como ouvia. Ouvia mesmo. Deixava o outro avançar, apanhava o fio, e depois respondia com precisão, como quem devolve ao interlocutor uma versão mais nítida do que ele próprio tentara dizer. Falar com ele tinha a sensação de uma coisa a ganhar forma. Havia gentileza nisso. Havia bondade. Uma bondade moldada, quase estrutural, como se fizesse parte do esqueleto.
E, no entanto, por trás desse homem atento havia o militar endurecido, acostumado à disciplina, ao cálculo, à frieza que a sobrevivência exige. A delicadeza não anulava o aço. O aço não esmagava a delicadeza. As duas coisas coexistiam, sem se desmentirem, como se fossem duas camadas de uma mesma pele.
Em 1986 fui a Londres. O Mano Jardo era então o representante da UNITA na cidade. Lembro-me de uma tarde numa livraria de Charing Cross Road. Percorria as estantes com fome metódica, puxando volumes de história britânica, biografia política, estudos sobre a monarquia, como quem abastece um armazém antes de uma campanha longa.
Nesse dia, escolheu uma biografia de Disraeli e um estudo sobre o Congresso de Berlim. “Precisamos de perceber como eles pensam o mundo”, disse-me, pesando o livro na mão, como se pesasse também uma arma. “A Inglaterra ainda tem influência. E influência, meu caro, não se pede. Conquista-se.”
Havia nele uma alegria quase juvenil quando falava de Londres, como se a cidade lhe tivesse aberto uma sala íntima, só dele. Amava aquela ordem visível das coisas: o rigor das estações, a maneira como as filas se compõem sem grito, a elegância silenciosa com que a cidade se move. Era como se essa maquinaria civil lhe oferecesse, por contraste, uma lição sobre poder, o poder que se exerce sem espalhafato, o poder que se tornou hábito.
Foi com o Mano Jardo que entrei, pela primeira vez, num country club inglês. Cheirava a cera de madeira antiga e a whisky caro. Esses lugares não se atravessam como se atravessa uma porta comum; entra-se neles como quem aprende uma liturgia. Vive-se ali o rito da recomendação, essa moeda invisível que decide quem pertence e quem apenas observa.
O Mano Jardo tinha amigos em Whitehall, conhecia pessoas com acesso a decisores, e sabia que, em certos circuitos, ser visto num lugar desses equivale a receber um selo social. Tratava isso com seriedade prática, não por servilismo, mas por cálculo. Os rituais da vida inglesa importavam dominar, porque a Inglaterra, então, ainda projectava influência profunda no mundo anglo-saxónico, e nós precisávamos, com urgência, de recolher o máximo dessa influência.
Cultivava jornalistas sem a pressa grosseira do oportunismo. Lembro-me de um jantar com um correspondente do Times: vinho francês, nada ostensivo, e uma conversa longa sobre Maquiavel e sobre a natureza dos movimentos de libertação. A sedução era sobretudo intelectual. O Mano Jardo sabia quando falar e quando deixar a frase pousar, como quem entende que a palavra, para funcionar, precisa de ar. E, no meio dessa urbanidade, passava a mensagem da UNITA com a parcimónia de quem sabe que propaganda em excesso estraga o ouvido.
Por vezes, organizava viagens para que esses jornalistas fossem a Angola. No terreno, acompanhava-os, enquadrava, dava-lhes contexto. Não era apenas logística; era sensibilidade política, tentativa de alinhar o relato com a linha mais ampla da UNITA, sem estrondo, com aquela paciência estratégica que prefere moldar uma percepção a exigir obediência.
Quando o mundo mudou e os ventos de Washington começaram a soprar de forma mais favorável, o Mano Jardo atravessou o Atlântico. A relação da UNITA com os Estados Unidos fora sempre tensa: havia desconfiança e existia a memória de que os primeiros quadros tinham passado por formação na China, trazendo consigo traços de uma matriz comunista que, em Washington, acendia alarmes por instinto.
Para manter vivo o vínculo americano, era preciso alguém que falasse a linguagem certa, não apenas a língua, mas o código: a arte de argumentar sem parecer vendedor. O Mano Jardo desempenhou esse papel com naturalidade. Os americanos gostavam dele. Havia nele uma finesse intelectual que não humilhava ninguém; e ele próprio parecia apreciar a electricidade de Washington, D.C., essa cidade em que uma frase bem colocada tem consequências.
Instalou-se com a família, fez vida, criou filhos. Com o tempo, inclinou-se para a academia, tornou-se professor de Ciência Política, ensinou gerações de estudantes americanos sobre África, sobre movimentos de libertação, sobre as complexidades que os manuais adoram simplificar. A vida académica foi-lhe criando raízes discretas, persistentes, como se também ali houvesse uma forma de combate: insistir no rigor, resistir à caricatura.
Durante anos, quando eu vivia na Flórida e passava por Washington, havia um ritual simples. Ele apanhava-me num motel do lado da Virgínia e levava-me a um restaurante brasileiro em Alexandria. Cheirava a alho e coentros. À mesa, entre feijoada e cerveja, a conversa com o Mano Jardo parecia um seminário privado: leitura lúcida das mudanças geopolíticas e das suas consequências para Angola, sem espuma, sem slogans, com uma clareza que não precisava de levantar a voz.
Tinha o dom raro de tornar o complexo acessível sem o empobrecer, como se iluminasse o tema em vez de o reduzir.
Por isso foi marcante vê-lo regressar a Angola e juntar-se ao projecto Pra-Já. O gesto parecia, ao mesmo tempo, continuação de um compromisso antigo e vontade de permanecer participante enquanto o país se aproximava, aos solavancos, de uma democracia mais adulta. Angola mudara. Ele também. Mas a ligação mantinha-se teimosa, como raiz que não se arranca.
Soube da sua morte há dias, nos Estados Unidos, onde acabou por falecer. E o que me ficou não foi apenas a memória do estratega ou do intelectual. Foi a imagem do homem naquela livraria de Londres, pesando um livro na mão, a sorrir com aquela alegria séria de quem sabe que as ideias, quando bem escolhidas, também são armas. E que a bondade, mesmo em tempo de guerra, não é fraqueza. É escolha.
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