Quando os jornalistas transformam as canetas em fuzis e atiram contra as zungueiras.
“Deixem o povo tomar conhecimento dos factos, e o país estará seguro."
A afirmação em epígrafe pertence ao décimo-sexto presidente dos Estados Unidos da América, Abraham Lincoln, que a proferiu em 1864.
Por razões objectivas ou simplesmente subjectivas – estas últimas que só o meu coração conhece ou sente --, confesso que algumas vezes tenho vergonha de dizer que sou jornalista.
Este sentimento me tem assaltado cada vez com mais frequência. Sobretudo nos últimos tempos, vejo o brio e o orgulho de pertencer a uma classe profissional de grande nobreza bem lá no fundo da sarjeta.
Mas nunca como na segunda-feira passada essa sensação foi tão avassaladora e frustrante. Fui tomado pela raiva ao ver a forma tão vil e maniqueísta como o assunto do dia -- a manifestação das zungueiras -- foi tratado pelos órgãos de comunicação social do Estado. Como é sabido, as vendedoras ambulantes insurgiram-se contra o facto de o Governo Provincial de Luanda as ter “corrido” da zona de São Paulo.
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Se uns se fizeram de cegos, surdos e mudos, não tendo passado qualquer informação sobre o caso, certa televisão foi ouvir a reacção do Governo Provincial de Luanda sem se dignar passar o facto noticioso original: que as vendedoras ambulantes de Luanda tinham soltado, das suas gargantas fartas de serem vilipendiadas, o seu maior grito de revolta ao longo dos anos.
Diante do ecrã do televisor, perguntei-me: meu Deus, como aquilo era possível? Como os jornalistas angolanos, a partir das suas redacções, conseguem ser contra o povo?
Mas foi mesmo possível. O que aconteceu nas redacções dos órgãos públicos foi, quanto a mim, equivalente a ver os jornalistas comportarem-se como aqueles reles fiscais que têm coragem de usurpar os míseros e pobres proventos do dia que as mães zungueiras arrecadam, a duras penas, nas suas jornadas pelas ruas de Luanda.
Foi como ver os repórteres substituírem as suas canetas e microfones por fuzis e atirarem sobre todas as pobres joanas cafriques que ganham o pão labutando debaixo do sol ardente de Luanda, como se fossem as “joanas d’arc” angolanas revoltadas com um sistema injusto, um regime cego e surdo ao seu sofrimento.
Os jornalistas não tinham que jogar fora o que aprenderam nos manuais de jornalismo. Eles tiveram condições de praticar a objectividade que tais manuais celebram, ouvindo as pobres senhoras. Pois elas representavam uma parte não desprezível do povo. Era e é preciso ouvir a razão delas. Porque, até prova em contrário, elas têm as suas razões, se é que a razão não está mesmo do lado delas.
Mas os jornalistas angolanos entenderam que as deviam crucificar. Ouvindo, não as razões e razão delas, mas as razões dos nossos pôncios pilatos e as razões dos nobres fariseus, burocratas que as incriminam e condenam a uma vida de sofrimento, a partir dos seus gabinetes.
Portanto, os jornalistas angolanos que enxameiam as redacções da imprensa publica perderam uma obrigação de, tempestivamente (como está agora na moda dizer), estarem ao lado do Povo. Ouvirem, primeiro, as suas reivindicações, e só depois ouvirem as razões do Governo, que com muita frequência lhes calca as botas de forma infame.
Mas se outras razões os jornalistas não tivessem, eles só precisavam de pensar que no meio das zungueiras estavam (estão) as suas irmãs, primas, sobrinhas e amigas. Enfim, parte essencial do povo que realmente geme. O povo que não usa colarinho branco.
Para tanto, até nem preciso que se ponham a matutar muito. As razões das zungueiras estão, logo de início, nas condições em que labutam. A resolução do problema da venda ambulante não está, nem pode estar de maneira alguma, do lado delas.
Se zonas como a de São Paulo ou a dos congolenses e outros pontos da cidade de Luanda se acham no caos que todos reconhecemos e vemos, atravancados e embaraçados pelo comércio ambulante, isto é, em primeiro lugar, resultado da incompetência dos órgãos administrativos do Estado que não têm encontrado, ao longo dos anos, solução para a situação.
Ela, a solução, não passa por criar meia dúzia de mercados nos arredores de Luanda e pensar que eles irão acolher o maior número de vendedores informais de rua que há na cidade. Quem vive em Luanda sabe que isto é mentira! Não é preciso ser economista ou técnico de estatística para ver que o número de vendedores ambulantes tem vindo a crescer exponencialmente. Na verdade, crescem ao ritmo a que galgam as cifras de crescimento da população que habita Luanda.
Portanto, é uma questão directamente ligada à endémica problemática do emprego e empregabilidade. Algo que não se resolve nem a chicote, como foi feito na segunda-feira, nem por acção de uma simples portaria que um burocrata possa criar no âmbito do GPL ou do Executivo central.
A situação tem raízes profundas no estado da economia nacional, incapaz de resolver o problema do emprego. Não há milagres, sem a criação no país de uma verdadeira indústria, capaz de absorver a mão-de-obra ociosa que enche -- para vergonha nossa -- as ruas da cidade.
Bastar-nos-ia atentar para o que se passou com a medida que ditou a extinção do Roque Santeiro, o maior mercado informal a céu aberto já produzido neste país. Extinguir o Roque Santeiro, aqui no coração de Luanda, ao pé de áreas nobres da cidade, era uma necessidade urgente? Obviamente. Ninguém discute isto. Mas também ficou claro que a medida esteve longe de diminuir ou pôr cobro à venda ambulante na cidade.
Está na cara que as zungueiras hoje enxotadas do São Paulo irão, amanhã, atravancar e embaraçar outra zona da cidade. Elas não têm para onde ir. Não têm escolha. O Governo não se esforçou o suficiente para criar alternativas, construindo mercados que absorvam toda esta gente.
É mentira que haja muitas bancadas vagas no Mercado de São Paulo. Não há. Custava alguma coisa projectarem a reabilitação do mercado na vertical, com dois ou três andares? Aí, sim, no mesmo espaço caberiam três vezes mais vendedores.
A mesma falta de visão ocorreu nos Congolenses e no mercado do Asa Branca, no Cazenga. Devido à incapacidade de absorver a procura, este último viu surgir na sua cintura um mercado envolvente, com uma arquitectura artesanal. E sem as condições adequadas de operações de compra e venda e de acondicionamento e armazenamento das mercadorias.
Às vezes pensamos que os vendedores ambulantes (homens ou mulheres) não passam de uma cambada de gente estulta. Mas estamos redondamente enganados. Eles não estudaram economia ou outra ciência similar, mas o seu “instinto” -- tal como refere Adam Smith com a teoria da “mão invisível” do mercado -- os levará, sempre, na realidade de Angola, a fazerem as suas transações diárias em zonas onde se encontre a maioria dos compradores: as artérias e ruas da cidade, e não, por exemplo, o Mercado do Trinta. Este está talhado para funcionar como um mercado abastecedor, destinando-se essencialmente a agentes grossistas e semi-retalhistas -- tanto do lado da oferta como da procura.
Quem fala do Mercado do Trinta, pode falar igualmente de outros conhecidos mercados da cidade, os quais, em idênticas circunstâncias, não servem os interesses dos vendedores ambulantes que são simples retalhistas. Os seus clientes não se encontram nestes mercados abastecedores. Quem vende tomates aos montinhos, bombó e ginguba, bonés e pasta de dentes não pode fazê-lo no Trinta. A pobre senhora que não sabe se ao fim do dia terá a sorte de vender três ou cinco montinhos de quiabos não está em condições de constituir uma bancada e pagar a respectiva taxa num destes “neo” mercados informais. A taxa pode “comer” metade do seu lucro do dia e ficar sem a única refeição do dia. Porque metade destes nossos compatriotas dão o litro diariamente apenas para evitar que o bicho lhes roa o estômago.
Resta dizer que não há garantias de que a zona de São Paulo não venha a estar novamente atafulhada de vendores ambulantes. Já vimos isto passado quando o governador de Luanda era Simão Paulo. Varreu a zona da Gajajeira e arredores, mas dias depois voltou tudo à primeira forma. O mesmo já terá sucedido, tempos mais tarde, com um outro governador. Portanto, Manuel Homem não está a descobrir a pólvora e muito menos tem qualquer garantia de sucesso. Afinal, o problema da venda ambulante em Luanda não se resolve com cacetes nem porretes sobre as pessoas.
Todas estas razões os jornalistas conhecem ou deveriam dominar. Logo, para uma situação como esta, qualquer calhamaço de jornalismo recomenda, à partida, que o jornalista não silencie o grito de revolta das zungueiras. Tendo que ouvir, e deve, os agentes do Governo, deverá fazê-lo fundamentalmente questionando as soluções que existem para uma problemática que se reconhece difícil, mas sem crucificar o povo, que é o lado onde, primacialmente, deve estar o jornalista.
Em suma, o jornalismo praticado pelos media estatais de Angola está longe de seguir a premissa de acordo com a qual uma imprensa livre funciona como o cão de guarda do cidadão sobre o Governo. Ou seja, não protege o cidadão do regime que temos, claramente um regime autocrático.
Aliás, o jornalista está, a olho nú, do lado do regime esquecendo-se quer da afirmação com que introduzimos o presente apontamento, quer de uma outra premissa, conforme segue:
“Para que as pessoas exerçam poder, elas precisam ser capazes de fazer escolhas bem fundamentadas e julgamentos independentes. E isso só pode acontecer se tiverem informações factuais e confiáveis, o que só se consegue com uma imprensa livre.” (*)
Esta é uma receita que vem prescrita num manual sobre assessoria de imprensa, que sei que muitos jornalistas angolanos tiveram acesso a ele.
Ou seja, mesmo ponderada a ideia de que a filosofia por que se guia a comunicação social pública no nosso país seja a de fazer dos órgãos estatais não mais do que uma gigantesca assessoria de imprensa do Governo, não havendo outra, a escolha dos jornalista deveria ser sempre a defesa do povo e do cidadão. Não vejo alternativa mais nobre do que está.
(*) in “Uma Assessoria de Imprensa Responsável – um Guia dos Bastidores”, de Margueritte Sullivan.
Severino Carlos
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