Caminhei sobre a terra escaldada da guerra.
Em fevereiro de 1976, fugimos do Huambo e seguimos de Serpa Pinto (atualmente Menongue) até ao Cuito Cuanavale, depois Mavinga, e dali atravessámos, durante meses, o mato angolano até alcançarmos a fronteira com a Zâmbia. Vi a fome no seu estado mais cru—crianças com o ventre distendido de tanto ingerirem frutos tóxicos, pessoas a tombarem de exaustão e inanição. E, ainda assim, mesmo nesses momentos de desespero, recordo-me da firmeza dos nossos mais velhos—Tio Jeremias Bandua, Tia Valeriana—que nos diziam com serenidade: mesmo quando a fome te devora, deves preservar a tua dignidade.
Passámos por campos de mandioca de camponeses que tinham tão pouco quanto nós. A tentação de colher para sobreviver era quase insuportável. Mas ensinavam-nos, sem hesitação: não roubes aos pobres. A nossa miséria não era licença para abandonarmos os valores que nos sustentavam.
Entre 1984 e 1986, voltei a estar no interior profundo de Angola, cercado por guerra e escassez. Matei uma tartaruga à paulada para me alimentar. Suspeito que, certa vez, me tenham servido cobra, disfarçada com óleo de palma como se fosse peixe. Vi pessoas a comer carne seca de macaco mergulhada em mel silvestre. Mas mesmo então—sobretudo então—roubar aos frágeis era visto como um ato condenável. Diminuía-nos. A fome podia torturar-nos, mas não nos desumanizava.
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É por isso que as imagens que chegam hoje de Luanda não são apenas perturbadoras—são profundamente desorientadoras.
Quando adultos invadem armazéns para saquear arroz, televisores, móveis—tudo o que conseguem carregar—isto não é uma revolta dos justos. É furto, puro e simples. Não devemos romantizar o caos.
Já vivi isto antes. No fervor anti-UNITA que se seguiu às eleições disputadas de 1992—quando cerca de 1.200 pessoas foram assassinadas só em Luanda, no que ficou conhecido como os “Sexta Feira Sangrenta ”—a fúria espalhou-se como fogo. Uma padaria de um familiar meu foi incendiada por uma multidão. Outra turba, inflamada pela histeria, tentou invadir a casa da minha falecida irmã, por suspeitas de afinidade política. Foi o seu vizinho, o Senhor Xico—oficial da FAPLA—quem se interpôs. Vestiu a farda, muniu a espingarda e declarou: “Daqui não passam.” Esse gesto de coragem salvou-lhe a vida. Eis o que significa dignidade em tempos de loucura.
E hoje, mais uma vez, vejo essa loucura a insinuar-se.
A instabilidade em Luanda está a paralisar o comércio informal, do qual dependem milhares de famílias. Quarenta e quatro por cento dos angolanos trabalham no setor informal. Mais de 60% da população vive em áreas urbanas, muitas vezes recorrendo ao comércio de subsistência para sobreviver. Ontem, vi pneus em chamas e multidões a correr pelas ruas perto das casas dos meus familiares. Liguei-lhes em pânico. Estariam em segurança? Imaginem a angústia que atravessa lares por todo o país.
Sejamos claros: o aumento do custo dos transportes, dos alimentos, da própria sobrevivência—são questões legítimas e urgentes. A inflação anual atingiu os 26,09% em 2024, impulsionada pela retirada de subsídios e pela acentuada desvalorização do kwanza. Produtos básicos como arroz, óleo e transportes tornaram-se inacessíveis para muitas famílias. Estima-se que 15 milhões de angolanos—quase metade da população—vivam com menos de $2,15 por dia. Estas realidades exigem respostas sérias e estruturadas. E é por isso que existem instituições.
O processo institucional de mudança pode ser lento, frustrante, até labiríntico. Mas é através dele que garantimos justiça, estabilidade e equidade. Quando se contorna esse processo, abre-se caminho à arbitrariedade—e, inevitavelmente, ao autoritarismo.
Sejamos realistas. Tenho idade suficiente para reconhecer que, muitas vezes, os que incitam à insurreição generalizada e ao saque irrefletido estão apenas à espreita, desejosos de assumir o poder e usufruir dos privilégios que hoje condenam. Se a economia angolana prosperar, todos beneficiarão. Se há descontentamento com quem governa, existem canais legítimos para o manifestar. A ideia de que é necessário que tudo ruína para que haja mudança é perigosamente ingénua. A euforia inicial de 1789 em França acabou por desembocar no terror da guilhotina. A História repete-se, sobretudo quando se recusa a ser lida.
Recordo-me, ainda jovem jornalista no Ocidente, de ler um artigo nos anos 80, escrito por um colega que afirmava que os angolanos eram incapazes de se reconciliar—que estaríamos para sempre condenados à guerra. Enganou-se.
Com dor, mas também com perseverança, Angola tornou-se um exemplo de reconciliação nacional. O Memorando do Luena de 2002 pôs termo a quase três décadas de conflito. E hoje, à luz dos padrões regionais, o país é considerado pacífico—apesar de existirem tensões latentes.
Em fevereiro passado, sentei-me na Assembleia Nacional, em Luanda, e ouvi parlamentares das Caraíbas a comentarem, com admiração visível, que aqueles que antes se combatiam ferozmente, agora trocam farpas no hemiciclo e, mais tarde, reúnem-se em subcomissões para construir consensos legislativos. Esses observadores estrangeiros estavam genuinamente impressionados. Viram um país a erguer-se do abismo, a aprender—com esforço e paciência—a coreografia da democracia. As eleições parlamentares de 2022, embora envoltas em polémicas quanto à transparência, foram consideradas competitivas por observadores internacionais.
E no entanto, pergunto-me: terão as pessoas consciência dos danos que as imagens destes motins estão a causar à reputação de Angola no exterior? O mundo observa. E o que vê não é confiança, mas colapso.
Precisamos urgentemente de investimento—investimento sério—para impulsionar os nossos esforços de diversificação económica. O setor petrolífero ainda representa mais de 90% das exportações e metade das receitas do Estado, tornando o país perigosamente vulnerável a choques externos. Há dois dias, enchi-me de orgulho ao saber que o filho do meu irmão Jorge, o Betinho, se licenciou em Tecnologias de Informação. É brilhante, ambicioso, e está pronto para servir o seu país. Queremos que empresas tecnológicas internacionais olhem para Angola e digam: Sim, aqui podemos construir. Aqui podemos contratar jovens como o Betinho.
Mas nenhuma empresa, por mais altruísta que seja, investirá num país que parece estar a autodestruir-se. O investimento exige três coisas: estabilidade, confiança e Estado de Direito.
Somos um povo que sobreviveu à guerra, ao exílio e à fome—e, mesmo assim, mantivemos intacto o nosso sentido de identidade e dignidade. Não o percamos agora.
Sim, devemos clamar por justiça. Sim, devemos exigir mais e melhor. Mas não nos destruamos uns aos outros no processo.
Porque, se o fizermos, um dia acordaremos e descobriremos que já nada resta—nem dignidade, nem ordem, nem comunidade.
Apenas fumo. Silêncio. E vergonha.
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