Diz-se que em Luanda, cidade ruidosa de latas ao sol e pregões que sobem do asfalto como vapor, apareceu um homem que caminha entre os crentes com o passo de quem já não pertence ao comum. Chama-se Marcelino Mário Bento. Pede que lhe chamem Profeta Elias. Conduz a igreja Sol da Justiça, Salvação de Todas as Nações. Traz consigo um segredo repetido até virar cântico: desde 2016, garante, não mastiga pão nem parte mandioca. Só líquidos e a força de Deus. Promete ir assim até 2056. Quarenta anos de vigília no corpo, quarenta anos com a sede ao lume.
A cidade sabe o que o corpo permite. As maternidades e as morgues ensinam sem descanso. Médicos de bata engomada, a cheirar a álcool de farmácia, aprendem cedo que a carne pede proteínas, sais, calorias, e que mesmo os recordes, por mais vigiados, acabam em olhos encovados e num coração que fala baixo. Ainda assim, Marcelino ergue o braço, cita versículos e assegura que a sua carne obedece a outra jurisdição.
Não há tarefa mais áspera do que atravessar o entardecer sem responder ao chamamento da mesa. Em Luanda, quando a luz se inclina, sobe dos becos o cheiro a muamba de galinha com jindungo, o peixe mamba a crepitar no carvão, a lasanha de legumes a sair do forno, a couve a murchar na frigideira. Para resistir a tais sinais é preciso uma revelação que corta e recompõe. Silêncio por dentro. Fogo por fora.
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O jejum é a porta. Lá dentro, onde a fé se mistura ao rumor das redes e à urgência de milagres, ele dá mais um passo. Em certos cultos, diante de microfones cansados, declarou ser o próprio Elias regressado. Contou que se viu num arrebatamento, já não negro como o homem angolano que a assembleia vê, mas branco, ancião de cabelos de neve. Perguntaram como conciliar a visão com o rosto que a vida lhe deu. Sorriu devagar. A minha origem é branca. Fiz-me negro nesta dispensação. E as pessoas, treinadas nas feiras a ver mercadoria virar pecado e, de novo, perdão no rodopio do dia, entenderam que o mundo aguenta duas verdades quando a voz não treme.
Já era antes de vocês existirem, disse. As paredes de chapa estremeceram como se nelas morasse um rio. Citou a profecia do retorno de Elias antes do grande dia do Senhor e sentou-se no próprio texto, como quem guarda lugar à sombra de uma mangueira.
Houve uma mulher. Chama-se Sónia. Quando ele apareceu com o anúncio de que Deus a apontara por esposa, ela não baixou a cabeça nem aceitou flores. Eu não vou casar consigo, repetiu. Você é Deus. O tímpano da família vibrou com a diferença de idades. O tio negou. A mãe negou. O pai, que às vezes cedia no recato, negou quando a mãe entrou na sala. Sónia dizia que tais uniões lhe repugnavam. Ainda assim a história começou a deslocar móveis.
Marcelino não prometeu sofás. Falou de chão nu, de deserto, de vigílias, de fome. Ela estava em Portugal quando ele subiu um monte durante quarenta dias e fez duas orações com lâmina. Que Deus fizesse falir quem a sustentava lá fora, para que regressasse. Que Deus lhe derramasse no coração um amor maior do que o dele. As coisas complicaram, contou Sónia. Teve de voltar. Ele disse que já lho anunciara. Rezei pela falência do teu tio. A frase caiu fria como moeda numa bacia vazia. O coração dela, porém, mudou de direção como barco que encontra de súbito o vento. No quarto dia do ultimato, telefonou. Sim.
Noivos, passaram cinco meses em vigílias noturnas. Todas as noites. A igreja por teto. As mãos no ar até o sangue formigar. A família, ao vê-la sair todas as tardes, supôs cama. Era chão. Chegou o dia do casamento, 3 de fevereiro de 2016, cerimónia ao cair da tarde. No caminho, a polícia travou carros à frente. Um camionista adormeceu e lançou o camião contra o carro da noiva. Vidros estilhaçados, madrinhas feridas, o pastor ao volante com a testa a latejar. No dia seguinte, os agentes perguntaram se a noiva sobrevivera. Sobreviveu. Sónia, a mais calma dentro da carroçaria batida, repetiu o que aprendera. Temos autoridade sobre serpentes e escorpiões. Chegou ao templo com o penteado remendado na rua e um vestido que já conhecera cimento e sopro. Casou. Para eles não foi acidente. Foi guerra.
Viveram um tempo em casa alugada no condomínio Vila Pacífica, no Zango Um. Tinham uma empregada. Depois, Marcelino disse que a voz lhe ordenara regresso ao monte por três anos. Sónia corrigiu doze para três com a ternura de quem afia o lápis do marido. Vendemos tudo menos a roupa e o carro, propôs ele. Amém, disse ela, como quem aprende a dormir com a chuva no zinco. Plantaram uma tenda pouco maior do que duas respirações. Havia outro homem na montanha. Feiticeiro, chamou-lhe Marcelino. Aguentou um ano. Depois, disse o profeta, fugiu da violência das orações.
Vieram noites com escorpiões na dobra do lençol, serpentes à procura do calor que a Bíblia proíbe, chuvas que empurravam o rio para dentro da tenda, sol a martelar os ossos ao meio-dia. Morderam-nos várias vezes, disse ele, e desenhou no ar o gesto do versículo. Está escrito: se beberdes coisa mortífera, não vos fará dano. Tocava o lugar da dor e o corpo obedecia ao texto. Quando Sónia tremeu de febre, ele negociou com Deus à beira do colapso. Se não a curas agora, desço. Amanhã parto. A febre, juram, partiu.
Com o nome já a cruzar oceanos, correm relatos de que o Profeta Elias começou a enviar fios de cabelo a devotos na Europa. Quem recebia o embrulho erguia-o como bênção. Os críticos viram raiz e maldição. Falaram de demonologia e de pactos impuros. Invocaram Zé Pilintra, Exu Caveira, Tranca Rua, Pombagira. Fecharam o círculo com palavras que a rua aprende nas novelas e nos terreiros. Ao receberes o cabelo de um pastor, recebeste desgraça em casa, decretou um detrator. Ele seguiu rota, sempre à frente do rumor, desmentindo apenas o suficiente para que a procissão não perdesse o compasso.
A igreja cresceu. Na Europa, na África Ocidental, na Ásia. Salas pequenas enchem-se depressa. Depois pedem pavilhões. Em bairros frios do norte e em cidades pesadas de calor, a história do angolano que jurou não mastigar prende a imaginação. Na Europa, senhoras idosas querem lê-lo e pedem livros ao neto que lhes instala a letra grande. No Japão, estudantes procuram a sua história como quem decifra um enigma e anotam versículos em cadernos de pauta fina. A notícia corre por mensagens de voz, por vídeos breves, por folhetos que passam de mão em mão à saída do metro. O nome chega primeiro. O espanto vem atrás.
Há cenas que se repetem e não se gastam. Um profeta visitante chega a Luanda. Ao cumprimentá-lo, a voz parte-se. Ele desaba em lágrimas, cai de joelhos, inteiro quebrado pela presença. Nos cultos, quando o Profeta Elias entra, muitos ficam sem chão. O corpo cede. O pranto sobe. Não é encenação, garantem. É vertigem. Até Sónia, a esposa, por vezes não sustém as lágrimas. Olha o púlpito, vê o profeta que é seu marido, e os olhos dão de si como nascente em tempo de chuva.
A medicina, porém, não se inclina. O organismo precisa do que precisa. O jejum prolongado seca músculo, despoja fígado, entorta o pensamento. Existem relatos de abstenções longas, vigiadas, medicadas, perigosas. Nove anos sem mastigar, quarenta anunciados, soam a corda puxada para lá do último nó. Mesmo entre os que o seguem, há quem lhe escreva com a ternura guardada para um irmão cansado. Homem de Deus, coma. Diga qual é a sua comida de infância. Não precisa de ir até 2056.
Nada disto impediu que o auditório crescesse. Em Luanda, onde a teologia da prosperidade ergueu templos de vidro fumado, o Profeta Elias acendeu o braseiro oposto. Cruz, disciplina, renúncia. Testemunhos de cura erguem-se como aves assustadas com a própria sombra e mesmo quem duvida não nega o efeito da sua presença nas noites de culto. Sónia permanece à sua direita, corpo franzino, olhos treinados para ver pela fé. Depois de casarmos, o Senhor mostrou-me quem ele era, disse. Contou que, antes disso, o vira em visão como homem branco, sério e digno, e ouvira uma voz. Este é o teu marido. Rezou longos dias. Respondeu enfim que sim, quando o sim já pesava como pedra no bolso.
Continuam no extremo. Jejuns. Vigílias. Recusas de conforto que fariam rir se não doessem. Ele fala de um livro futuro e de um avivamento que virá como vento quente do leste. Anuncia juízos sobre igrejas de fachada e preservação para o resto fiel. A vida deles, apesar de tudo, reduziu-se a uma tenda invisível. Entrar. Orar. Sair. Repetir.
No mapa fervilhante do cristianismo africano, onde profetas nascem como manhãs de estação quente, Marcelino Mário Bento brilha e divide. Para uns, é Elias de regresso, voz no ermo a chamar a igreja à santidade. Para outros, é homem perigoso, que reparte cabelo como amuleto, promete o biologicamente impraticável e pega na autoridade espiritual como quem pega numa vara de marmelo. A verdade, como quase sempre, escapa por uma fresta.
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