A história da UNITA nasceu em terreno movediço, contra correntes que a empurravam para a irrelevância. Quando surgiu em 1966, o palco parecia já repartido entre MPLA e FNLA. Ainda assim, do Leste esquecido e das aldeias do planalto central, onde o Estado não passava de rumor longínquo, ergueu-se um movimento que desafiou as probabilidades, sobreviveu a derrotas sucessivas, se reinventou e hoje se encontra, quase paradoxalmente, no centro da vida política angolana.
Sobreviveu para quê? Teria a UNITA um destino inscrito desde a origem ou foi descobrindo o seu próprio sentido ao longo do caminho? Há diferença decisiva entre nascer com um propósito nítido e fabricar esse propósito ao olhar para trás. Durante décadas, a UNITA avançou em marcha apressada, sem o luxo de pausas para interrogar a sua razão de ser; aquilo a que se chamou estratégia foi, muitas vezes, improvisação brilhante.
O primeiro grande mérito da UNITA reside no facto de ter dado voz a um país que uma parte significativa da elite nem sequer via. No interior, as comunidades viviam com ritmos próprios, línguas e lealdades que mal encontravam tradução nos discursos oficiais. Ao traduzir esse mundo aparentemente periférico em linguagem política, a UNITA converteu margens em sujeito histórico; o interior começou a reivindicar o direito de se pensar como centro.
Depois da independência, vieram derrotas severas, retiradas apressadas, perseguições sistemáticas. A UNITA escolheu outro caminho: recuou quando necessário, reorganizou-se, aprendeu a viver com quase nada e voltou a erguer a sua estrutura a partir dos ossos. Essa resiliência nasceu de disciplina interna exigente, de uma cultura de sacrifício e de capacidade rara de adaptação.
Podemos admirar essa tenacidade, mas seria desonesto não reconhecer o preço. A luta permanente pela sobrevivência deixou pouco espaço para a interrogação serena dos fins últimos. A UNITA tornou-se perita em técnicas de sobrevivência política; essa especialização, todavia, limitou durante muito tempo a faculdade de imaginar um futuro que não fosse apenas escapar ao adversário.
Durante anos, Jamba funcionou como capital alternativa, com escolas, hospitais, centros de formação de quadros; era um esboço de Estado plantado no meio da guerra. Tudo, porém, vivia sob regime de emergência permanente. Como conceber uma Angola em paz, se cada instituição podia transformar-se, de uma hora para a outra, em alvo militar?
A diplomacia teve função vital: impediu o esmagamento total no plano internacional. Jorge Sangumba desempenhou aí papel decisivo, levando a mensagem ao coração da América negra e construindo pontes com a diáspora. As alianças com a África do Sul do apartheid e com os Estados Unidos foram escolhas moralmente difíceis, mas respostas desesperadas a um imperativo brutal de sobrevivência. Esse pragmatismo reflexo ajuda a explicar a sobrevivência, mas torna mais complexa, hoje, a transição para uma política de escolhas plenamente livres.
Todo movimento armado prolongado acumula zonas de sombra. É preciso dizê-lo: há mortes de quadros importantes cujas circunstâncias permanecem por esclarecer. Famílias inteiras, e o país consigo, têm direito a uma palavra derradeira sobre esses episódios. Quando a sobrevivência se converte em princípio absoluto, qualquer voz interna discordante pode ser percebida como ameaça mortal; isso não desculpa as mortes, mas ajuda a compreender a lógica que as tornou possíveis.
Com a paz, a UNITA revelou uma qualidade rara: aceitou o multipartidarismo, disputou eleições, converteu antigos guerrilheiros em parlamentares. A pergunta impõe-se: tratou-se de reinvenção autêntica ou de mais uma adaptação ditada pelas circunstâncias? Adaptar-se é mudar o suficiente para continuar a existir; transformar-se é repensar, desde a raiz, o que se é e que tipo de país se propõe construir.
O legado mais duradouro da UNITA poderá residir no facto de ter demonstrado que vozes e regiões historicamente marginalizadas podem inscrever-se no centro do sistema político. A sua sobrevivência testemunha que, em Angola, sempre existiu uma demanda profunda por pluralismo e alternância.
O pragmatismo foi, desde cedo, marca distintiva da UNITA. Em política, como na aviação, é valioso ter no comando alguém que conheça turbulências e saiba manter a calma. A imagem, contudo, tem limite. Um piloto exímio em emergências é insubstituível quando o céu se fecha; quando o céu se abre, exige-se capacidade de traçar rotas extensas, de escolher destinos em liberdade.
Os delegados reunidos neste Congresso fariam bem em guardar isto na memória. Pela primeira vez na sua história, a UNITA confronta-se com uma escolha verdadeiramente livre. Não há exército inimigo às portas, não há colapso iminente. Pela primeira vez, o partido pode definir o rumo sem que a decisão seja ditada pela urgência da sobrevivência física.
Este é o teste decisivo. Será o partido capaz de passar de uma cultura de sobrevivência reflexa para uma cultura de escolha estratégica consciente? Uma organização moldada na urgência saberá habituar-se ao regime mais lento da normalidade?
Talvez o maior desafio deste Congresso não seja apenas eleger o dirigente certo, mas verificar se a UNITA consegue tornar-se autora consciente da própria história, em lugar de permanecer produto brilhante, embora essencialmente reactivo, das circunstâncias.
Num país que continua a tentar reconciliar memórias em conflito, olhar a trajetória da UNITA com benevolência crítica não significa esquecer sofrimentos; significa reconhecer que, sem a persistência desse movimento, a vida política angolana seria hoje mais estreita.
A verdadeira maturidade chegará quando formos capazes de contemplar essa longa história e perguntar, sem medo: e agora? Pela primeira vez, a UNITA dispõe do terrível luxo de poder responder em liberdade. A pergunta que se impõe é esta: agora que sobrevivemos, o que queremos realmente ser?
Sousa Jamba
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